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José Luiz Portella

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Belluzzo: Como Lula fará a Nova Carta aos Brasileiros

Luiz Gonzaga Belluzzo, economista e professor da Unicamp - Fabio Braga/Folhapress
Luiz Gonzaga Belluzzo, economista e professor da Unicamp Imagem: Fabio Braga/Folhapress

Colunista do UOL

10/10/2021 04h00

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Luiz Gonzaga Belluzzo, considerado um dos cem economistas mais influentes entre os heterodoxos —e contestado por ortodoxos—, deu uma longa entrevista à coluna em que avalia com detalhes e apoio de autores relevantes o momento econômico no Brasil e as condições gerais da economia. A discussão gira sempre em torno do gasto público.

Alguém pode discordar, mas não pode deixar de avaliar seus argumentos. Belluzzo, que tem muita proximidade com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, também adianta qual será a Nova Carta aos Brasileiros, endereçada não aos empresários e à classe média, mas à população que o petista considera mais vulnerável.

É uma promessa a ser observada, uma vez que muitos entendem que Lula irá compor com a elite econômica para governar. O segredo é até onde vai essa composição. A entrevista indica um sinal.

Leia a íntegra da entrevista a seguir:

O mercado financeiro fala sempre que o ajuste fiscal seria suficiente para os empresários ganharem confiança para investir. O que acha? Você pode explicar sobre o funcionamento da demanda efetiva?

Luiz Gonzaga Belluzzo - Na visão ortodoxa, a política fiscal deve estar encaminhada para uma situação de equilíbrio intertemporal sustentável, dito estrutural; a política monetária assentada na coordenação das expectativas dos indivíduos racionais (regime de metas) controlada por um banco central independente. Estas condições macroeconômicas significam que as duas dimensões inexoravelmente públicas das economias de mercado - a moeda e as finanças do Estado - devem ser administradas de forma a não perturbar o funcionamento das forças que sempre reconduzem a economia ao equilíbrio de longo prazo.

As insuficiências dessa concepção chegaram a tais absurdos que suscitaram reações no ambiente ortodoxo. Ao tratar da austeridade, o estudo do FMI "Neoliberalism: Oversold?" indica: a elevação de impostos ou do corte de gastos para reduzir a dívida pode ter um custo muito maior do que a mitigação do risco de crise prometido pela sua redução. É preferível a eleição de políticas que permitam a redução do percentual da dívida, diz o FMI, "organicamente pelo crescimento".

Quanto à demanda efetiva, Keynes desvendou no dinheiro, em sua forma essencial de riqueza-potência, a ponte que permite a passagem do presente quase certo para um futuro terrivelmente incerto. Forma necessária, porque o dinheiro não apenas lubrifica transações entre valores existentes.

Ademais de um meio de circulação de mercadorias e ativos existentes, o dinheiro em sua forma capitalista é, sobretudo, uma aposta na geração e acumulação de riqueza futura, o que envolve o pagamento de salários monetários aos trabalhadores e aquisição de meios de produção com o propósito de captura de um valor monetário acima do que foi gasto. Se não há aposta na criação de riqueza futura, não há gasto e, se não há gasto, o circuito da renda monetária fenece.

Em mensagem enviada a seus amigos americanos em 1934, Keynes escreveu de forma simples e pragmática: "Quando me deparo com a questão do gasto, imagino que ninguém de senso comum duvidaria do que vou dizer, a menos que sua mente tinha sido embaralhada anteriormente por um financista de "escola" ou um economista "ortodoxo."

Nós produzimos a fim de vender. Em outras palavras, nós produzimos em resposta aos gastos. É impossível supor que nós possamos estimular a produção e o emprego, abstendo-se de gastar. Então, como eu disse, a resposta é óbvia.

Mas, em um segundo olhar, vejo que a questão tem sido encaminhada para inspirar uma dúvida insidiosa. Para muitos, gasto significa extravagância. Um homem que é extravagante logo se torna pobre. Como, então, uma nação pode tornar-se rica, fazendo o que empobrece um indivíduo? Esse pensamento desnorteia o público.

No entanto, um comportamento que pode fazer um único indivíduo pobre pode fazer uma nação rica. Quando um indivíduo gasta, ele não afeta só a si mesmo, mas outros. A despesa é uma transação bilateral. Se eu gastar minha renda para comprar algo que você pode fazer para mim, eu não aumentei minha própria renda, mas aumentei a sua.

Se você responder comprando algo que eu posso fazer para você, então minha renda também é aumentada. Assim, quando estamos a pensar na nação como um todo, devemos ter em conta os resultados como um todo. O resto da comunidade é enriquecido pela despesa de um indivíduo. Sua despesa é simplesmente uma adição à renda de todos os outros.

Se todo mundo gasta mais, todo mundo é mais rico e ninguém é mais pobre. Cada homem beneficia-se da despesa de seu vizinho, e as rendas são aumentadas na quantidade exigida para fornecer os meios para a despesa adicional.

Há apenas um limite para que o rendimento de uma nação possa ser aumentado desta forma: o limite fixado pela capacidade física de produzir. Abster-se de gastos em um momento de depressão, não só falha, do ponto de vista nacional, como significa desperdício de homens disponíveis, e desperdício de máquinas disponíveis, para não falar da miséria humana.

A nação é simplesmente uma coleção de indivíduos. Se por algum motivo os indivíduos que compõem a nação não estão dispostos, cada um em sua capacidade privada, a gastar o suficiente para empregar os recursos com os quais a nação é dotada, então é o governo —representante coletivo de todos os indivíduos que deve preencher a lacuna.

Os efeitos das despesas governamentais são precisamente os mesmos que os efeitos da despesa dos indivíduos. Assim, o aumento da receita fiscal fornece a fonte das despesas públicas extras. Por isso, pode ser vantajoso para um governo recorrer a um empréstimo do sistema bancário.

Quando o governo toma emprestado para gastar, indubitavelmente a nação assume uma dívida. Mas é a dívida da nação para os seus próprios cidadãos, uma coisa muito diferente da dívida de um indivíduo privado. A nação é os cidadãos que a compõem- não mais e não menos.

Homens anteriormente desempregados estão agora a ganhar salários e gastam esses salários para abastecer suas as necessidades e confortos da vida— camisas, botas e similares. Os criadores dessas camisas e botas, que até então estavam desempregados, gastarão seus salários e, assim, estabelecem uma nova rodada de emprego adicional, de produção adicional, de salários adicionais e de poder aquisitivo adicional.

E assim vai, para cada homem empregado no esquema do governo, três, ou talvez quatro, homens adicionais são empregados para prover suas necessidades e para as necessidades de um outro. Desta forma, uma determinada taxa de despesa governamental dará lugar a quatro ou cinco vezes mais emprego que um cálculo simplório sugeriria...

Ao mesmo tempo, as receitas da tributação crescem à medida que o rendimento tributável da nação aumenta, e os valores da propriedade são restabelecidos."

O que você está lendo de Jeremy Rudd? Explique quem é e o significado do que ele escreveu.

Luiz Gonzaga Belluzzo - Jeremy Rudd é um economista que trabalha no board do Federal Reserve e fez críticas às teorias de inflação que atribuem papel determinante das expectativas na formação das taxas de variação do nível geral de preços. Rudd atribui maior importância às transformações estruturais das economias capitalistas nas última quatro décadas. Entre essas transformações, ele acentua o papel das mudanças nos mercados de trabalho e na redução do poder de barganha dos trabalhadores.

Diz ele que uma característica importante da dinâmica da inflação após meados da década de 1990 parece ser a falta de uma forte espiral salário-preço (ou de qualquer feedback significativo ano a ano entre o crescimento dos salários e a inflação). Parece improvável que as expectativas de inflação de longo prazo bem ancoradas tenham sido a causa principal dessa estabilidade... Uma observação sobre a natureza real do "processo de negociação salarial" é útil neste momento.

Fora algumas indústrias sindicalizadas (que agora representam apenas cerca de 6% do emprego), uma barganha salarial formal —no sentido de uma negociação estruturada sobre as taxas de salários para o próximo ano— realmente não existe mais nos Estados Unidos.

Rudd assesta baterias contra as teorias de metas de inflação ao afirmar que muitos bancos centrais consideram "ancorar" ou "gerenciar" as expectativas de inflação do público como um importante objetivo ou instrumento político.

Aqui, eu argumento que usar as expectativas de inflação para explicar a dinâmica da inflação observada é desnecessário e insano: desnecessário porque existe uma explicação alternativa que é igualmente, se não mais plausível, e insano porque invocar um canal de expectativas tem nenhuma base teórica ou empírica convincente e poderia potencialmente resultar em erros graves de política."

Essa opinião vai provocar desconforto nos adeptos das políticas de metas de inflação, sobretudo em um momento de simultâneos choque de oferta que maltratam as economias do planeta. Não por acaso o Federal Reserve observa esse momento com temor e cautela.

Você acha que por trás das teses do mercado financeiro há uma defesa de interesse de classe?

Luiz Gonzaga Belluzzo - O sistema financeiro é a instância dominante nas relações econômicas do capitalismo de todos os tempos e em todos os seus tempos. Um sábio atilado chamou o dinheiro e suas instituições capitalistas de "Comunidade". Sim, Comunidade com C maiúsculo. Em 1933, John Maynard Keynes disparou petardos contra o bunker das finanças: "As regras autodestrutivas da finança são capazes de apagar o sol e as estrelas porque não pagam dividendos".

Apoiado no linguista John Austin, Christian Marazzi, em seu livro "Capital e Linguagem", cuida das marchas e contramarchas da finança dos últimos 30 anos. Marazzi sublinha a natureza performativa da linguagem do dinheiro e dos mercados financeiros. Performativo quer dizer que a linguagem dos mercados financeiros contemporâneos não descreve, e muito menos "analisa" um determinado estado de coisas, mas produz imediatamente fatos reais.

O domínio da finança produziu o que Christian Marazzi chamou de "metamorfose antropológica do indivíduo pós-moderno". Ele invoca o capítulo XII da Teoria Geral. Aí, Keynes se vale dos concursos de beleza promovidos pelos jornais para descrever a formação de convenções nos mercados de ativos.

Os leitores são instados a escolher os seis rostos mais bonitos entre uma centena de fotografias. O prêmio será entregue àquela cuja escolha esteja mais próxima da média das opiniões. Não se trata, portanto, de apontar o rosto mais bonito na opinião de cada um dos participantes, mas, sim, de escolher o rosto que mais se aproxima da opinião média dos participantes do torneio.

Keynes introduz, assim, na teoria econômica as relações complexas entre Estrutura e Ação, entre papéis sociais e sua execução pelos indivíduos convencidos de sua autodeterminação, mas, de fato, enredados no movimento das estruturas. Na esteira de Freud, Keynes introduz as configurações subjetivas produzidas pelas interações dos indivíduos no ecúmeno social das "economias de mercado".

Quando dizem que não há dinheiro para pagar dívida ou para investimentos, você cita vários exemplos contrários de como fazer. Como o Banco Central pode atuar no caso de precisar injetar dinheiro para haver investimento público no Brasil? O Brasil, no caso, seria diferente dos EUA? Então não poderia aplicar a mesma estratégia do FED?

Luiz Gonzaga Belluzzo - As torres de marfim dos economistas, práticos e acadêmicos, estão alvoroçadas com as descobertas da Moderna Teoria Monetária. Em meio à ruptura dos mercados provocada pela pandemia, ganhou mais força de novidade o poder de criação monetária abrigado nos bancos e nos Bancos Centrais. Amigos que se dedicam ao estudo do dinheiro e de sua história de estripulias sentem incômodos diante da reapresentação do Velho Monarca dos mercados com a roupagem de um influencer novidadeiro.

Vamos passar a bola para um historiador. Em sua obra Civilização Material e Capitalismo, Fernand Braudel afirma que "é na cúspide da sociedade que o capitalismo afirma a sua força e revela a sua natureza. É na altura dos Bardi, dos Jacques Coer, dos Fugger, dos John Law e dos Necker que devemos fazer as perguntas, que temos a chance de descobrir o capitalismo".

Braudel não está falando do mercado, do jogo das trocas que, desde a antiguidade, se insinua nos interstícios da vida social. Ele está se referindo ao capitalismo dos bancos, ou seja, à ordem econômica em que o dinheiro não é apenas um intermediário nas transações, mas a forma geral da riqueza e o objetivo final da concorrência entre os produtores.

O capitalismo supõe o mercado, mas o mercado apenas anuncia a possibilidade do capitalismo que só se efetiva quando a produção se organiza sob uma forma adequada ao propósito do ganho monetário e não apenas para a troca eventual de mercadorias, destinada simplesmente a diversificar o consumo dos produtores independentes.

A produção organizada diretamente para a troca, ou seja, o intercâmbio generalizado de mercadorias, só pode existir sob o capitalismo. A sociabilidade dos produtores privados que produzem diretamente para a troca começa a ser definida a partir da numeração das mercadorias - inclusive dos proprietários da força de trabalho - por uma medida comum de valor.

Numa segunda etapa, os indivíduos "separados" devem se submeter ao teste do reconhecimento social da "declaração" de valor de seu produto mediante o veredicto anônimo do mercado. Isto é, a mercadoria particular deve transfigurar-se realmente em sua forma geral, o dinheiro.

Se, no "salto-mortal" para o dinheiro a mercadoria sucumbe, o produtor também soçobra. O dinheiro é, portanto, fundamento das relações entre os produtores privados e, por outro lado, o único critério quantitativo admissível para a avaliação do enriquecimento privado.

Esse sistema complexo, em sua evolução, criou uma forma interessante de criar dinheiro para dar início ao jogo do mercado. O dinheiro criado pelos bancos foi adquirindo um caráter universal, ou seja, deve ser aceito em todas as negociações, transações e, sobretudo, na marcação do valor da riqueza registrada nos balanços.

Não só as mercadorias têm de receber o carimbo monetário, mas a situação patrimonial, devedora ou credora das empresas e dos bancos deve estar registrada nos balanços. Nesse caso, o dinheiro aparece em sua função de reserva de valor, forma geral da riqueza.

O Estado é o senhor da moeda, mas os bancos, sob a supervisão e o controle do Banco Central, são incumbidos da criação monetária. Os "fluxos de crédito" promovem contínuas mudanças na composição nos estoques de riqueza. São íntimas as relações entre o avanço do sistema de crédito e a acumulação de títulos que representam direitos sobre a renda e a riqueza.

Gerado ao logo de vários ciclos de dinheiro de crédito, esse estoque de certificados de propriedade (ações) e títulos de dívida é avaliado diariamente nos mercados organizados. Essa avaliação depende fundamentalmente das expectativas dos agentes do mercado. Essas expectativas flutuam conforme as ondas de otimismo e pessimismo ou, se quiserem, conforme a alternância entre a ganância e o medo.

Na crise do coronavírus, os mercados financeiros perderam a capacidade de avaliar os preços dos ativos. O medo esmagou a ganância. Os senhores da riqueza financeira precipitaram seus portfólios na busca desesperada pelo dinheiro. Se todos querem vender, ninguém quer comprar. Só o provimento de grana pelo Banco Central salva os desesperados. Os bancos centrais salvaram e estão a salvar.

Os mercados socorridos aprofundam as divergências abissais entre a valorização das ações nas bolsas de valores e a derrocada do circuito de formação da renda e do emprego.

Os atônitos comentaristas econômicos da mídia não sabem se aplaudem as bolsas de valores eufóricas ou se pranteiam os milhões de desempregados que vagueiam pelo planeta. É a mesma turma que repete sem cessar na cola dos Paulo Guedes da vida: "Não há dinheiro".

O que você acha do teto de gastos?

Luiz Gonzaga Belluzzo - Nas catacumbas do teto de gastos, rastejam os Modelos Dinâmicos Estocásticos de Equilíbrio Geral. Nessa geringonça habita o Produto Potencial, uma construção inobservável que se propõe a definir as trajetórias dessa enteléquia que supõe pleno emprego dos fatores e inflação dentro da meta.

O "hiato do produto" —a diferença entre o PIB real e a enteléquia inobservável— é o indicador da posição da economia: quando o hiato é positivo, diz-se que a economia está superaquecida; um hiato negativo assinala a subutilização de recursos econômicos.

Imagino que os ditos modelos apontem, nesse momento de pandemia, para um encolhimento do Produto Potencial causado pela derrocada das estruturas da oferta nas economias: as empresas fecham, a taxa de desemprego natural dispara, a produtividade despenca.

Os economistas Rodrigo Orair, Sérgio Gobetti e Manuel Pires escreveram no Observatório Fiscal do IBRE-FCV sobre os riscos de utilização produto potencial:

"Períodos de baixo crescimento e elevada ociosidade, podem levar a percepções enganosas sobre o seu comportamento. Os analistas usam o conceito de PIB potencial para expurgar o efeito das condições cíclicas da economia sobre a análise da despesa pública. Essa abordagem deve ser vista com cuidado, pois as estimativas de PIB potencial contêm elevada incerteza e provavelmente devem ter sido afetadas pela crise de 2015-16 e voltarão a ser afetados pela pandemia."

A despeito do colapso do Produto Observável, o cálculo do hiato do produto poderia constatar que essa medida não observável estaria registrando um superaquecimento da economia e qualquer iniciativa anticíclica da política monetária promoveria uma disparada da inflação.

Como ensina o economista americano Robert Gordon, "para qualquer projeção de crescimento do PIB Observável, um crescimento mais lento do PIB Potencial significa que o hiato do produto vai transitar da região negativa para o território positivo, suscitando pressões sobre a taxa de inflação". No popular: " não mexam na demanda porque tudo é pelo "lado da oferta".

A utilização do produto potencial e dos correspondentes hiatos do produto —positivo ou negativo— constituem um esforço singular da teologia do equilíbrio. A construção dos modelos que abrigam o produto potencial se esmera em "normalizar", ou seja, expurgar a demanda do desempenho das economias capitalistas.

Quando ouço perplexidades travestidas em expressões do tipo "não sei de onde vão tirar o dinheiro", sou tomado pela tentação de invadir o terreno da ficção econômica. Assim, sugiro aos farejadores de grana pedir emprestado a Steven Spielberg o uniforme do Indiana Jones e estimular um ilustre economista de mercado a vestir a fatiota do herói, além de instigar nos Farialimers o destemor de Harrison Ford em seu enfrentamento com múmias e demônios.

Assim paramentado e acompanhado, o sábio da Crematística vai se sentir em condições de resolver a encrenca da falta de dinheiro. Amparado nas certezas dos modelos Dinâmicos Estocásticos de Equilíbrio Geral, o Indiana Jones do mercado vai à caça da Arca Perdida, certamente enterrada em algum escaninho abaixo do Teto de Gastos, sob o olhar vigilante do guardião Paulo Guedes.

Uma vez encontrada a Arca da Fortuna, é só mandar brasa no gasto com o dinheiro redescoberto. Imagino que Arquimedes cederia de bom grado a expressão Eureka! à proeza de tal calibre e impetuosa criatividade. Tira a dinheirama metálica da Arca Perdida e paga, indistintamente, pobres e paupérrimos com moedas de ouro.

Nos momentos de penúria e sofrimento não são poucos os que invocam O Livro do Eclesiástico, versículo 31, 5, para demonizar a moeda de ouro que, sem saber, muitos economistas consideram verdadeira: "Aquele que ama o ouro dificilmente escapa do pecado". Na Eneida, o poeta Virgílio, em versos contundentes proclamou "A que não obrigas os corações humanos, ó execranda fome do ouro!"

John Maynard Keynes não deixou barato e escreveu uma diatribe contra o padrão-ouro intitulado Auri Sacra Fames, a Execranda Fome do Ouro. Não faltou, no Brasil Varonil, quem traduzisse o verso de Virgílio como "A Sagrada Fome do Ouro". Devemos admitir que os esgares e piripaques dos mercados e de seus economistas diante das ameaças de violação do Teto permitem compreender a troca semântica: sai Execranda entra Sagrada.

Tantas e tais foram as imprecações contra o padrão ouro que, agarrado à sua natureza inquieta e criativa, o capitalismo libertou-se dos incômodos e inconveniências das amarras auríferas. Assim, sistemas monetários modernos ultrapassaram as limitações impostas pela consubstanciação das funções monetárias em uma mercadoria particular (caso do ouro ou dos sistemas monetários que prevaleceram até o início do século XX).

Hoje esses sistemas são fundados exclusivamente na confiança e não em automatismos relacionados a uma imaginária escassez do metal ou ao caráter "natural" da moeda- mercadoria. "E o lastro?", perguntam os saudosos do padrão-ouro. Ah sim, a âncora, retrucam os contemporâneos. Diria Hegel que a moeda realiza o seu conceito: é uma instituição social ancorada nas areias movediças da confiança. Fiducia, Credere.

Em um boletim de 2014, "Money Creation in the Modern Economy", o Banco da Inglaterra ensina que nos sistemas monetários contemporâneos, o dinheiro é administrado em primeira instância pelos bancos. Essas instituições têm o poder de avaliar o crédito de cada um dos centros privados de produção e de geração de renda e, com base nisso, emitir obrigações contra si próprios, ou seja, depósitos à vista, o meio de pagamento dominante. A criação monetária depende da avaliação dos bancos a respeito do risco de cada aposta privada.

O dinheiro ingressa na circulação com a benção do Estado, o cobrador de impostos, e a unção das relações de propriedade, isto é, decorre das relações estabelecidas entre credores e devedores, mediante a cobrança de uma taxa de juros. No circuito da renda monetária, os gastos privados e públicos precedem a coleta de impostos. As razões são óbvias. Não há como recolher impostos, se a renda não circula.

O banco credor empresta exercendo a função de agente privado do valor universal. O devedor exercita seus anseios de enriquecimento como proprietário privado, usufruindo a potência do valor universal. O dinheiro é riqueza potencial, promessa de enriquecimento, mas também algoz do fracasso. Se o devedor não servir a dívida, o banco, agente privado do valor universal, deve expropriar o inadimplente.

A política monetária do Estado é incumbida, em cada momento do ciclo de crédito, de estabelecer as condições que devem regrar e disciplinar as expectativas de credores e devedores. Faz isso mediante a taxa de juros que remunera as reservas bancárias.

Existe equilíbrio fiscal?

Luiz Gonzaga Belluzzo - A economista Orsola Constantini cuida de investigar as razões da utilização do Orçamento Ciclicamente Ajustado (OAC) pelos governos nas últimas décadas. Esse procedimento é um filhote de estimação do produto potencial.

Diz Constantini que "o Orçamento Ajustado Ciclicamente é uma estimativa estatística que orienta os funcionários do governo nas decisões de gasto e tributação. Muitos economistas dirão que essa ferramenta é imprecisa. No entanto, as instituições nacionais e internacionais dependem dela para justificar decisões importantes.

Mas, dispara Constantini, há algo que os especialistas não dizem: o orçamento ajustado ciclicamente pode ser facilmente manobrado, dependendo da direção dos ventos políticos. Além disso, sua aparência técnica é suficientemente obscura para que os leigos olhem para essa construção como objetiva e indiscutível. É aí que mora o perigo.

Políticos e funcionários do governo que usam o Orçamento Ciclicamente Ajustado podem limitar o leque de escolhas políticas que parecem viáveis para uma comunidade. Os formuladores de políticas também podem evitar o incômodo de assumir a responsabilidade política por essas escolhas. Tivemos que fazer isso! O orçamento diz isso!

Gol da austeridade, aponta o árbitro tecnocrata. Os economistas do teto de gastos comemoram.

Você se considera um marxista keynesiano?

Luiz Gonzaga Belluzzo - Eu me considero devedor de três economistas, Marx, Keynes e Schumpeter sem desconsiderar outros mais recentes, ou mesmo contemporâneos. Marx morreu em 1883, ano em que nasceram Keynes e Schumpeter.

Minha escolha não foi inspirada por essa coincidência, mas na forma adotada por esses grandes pensadores para cuidar do objeto de suas investigações. Marx jamais usou a palavra Capitalismo para designar esse objeto. Ele utilizava a expressão "Regime do Capital".

Keynes, depois de deambular nos corredores estreitos da Teoria Clássica, escolheu investigar as propriedades da 'Economia Monetária da Produção", ideia que comandou a construção da Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda.

Schumpeter publicou sua Teoria do Desenvolvimento Capitalista em 1912 com o propósito de desvendar as fontes de dinamismo dessa economia. Aí descobriu a importância do crédito e do empresário inovador.

A trinca compartilha a concepção da economia de mercado capitalista como um sistema de relações sociais, uma estrutura social e econômica em permanente transformação para assegurar a reprodução de suas formas.

Eles anteciparam o conceito de complexidade que começa a frequentar os estudos de alguns economistas contemporâneos, em oposição aos estudiosos que ainda apoiam sua investigações nos despautérios do individualismo metodológico.

Qual a lição mais importante de Marx e Keynes?

Luiz Gonzaga Belluzzo - Marx, Keynes e Schumpeter desmontaram as elegâncias do capitalismo bem-comportado, aquele dos Quatro Cavaleiros da Bonança: Naturalismo, Individualismo, Racionalismo e Equilíbrio a desvendar o dinheiro, em sua forma essencial de riqueza-potência, a ponte que permite a passagem do presente quase certo para um futuro terrivelmente incerto, a trinca soltou o demônio do desejo de acumular riqueza abstrata nos cercadinhos do equilíbrio em que se movem os indivíduos racionais.

Essa turma de boa gente garantia que o dinheiro apenas lubrifica as transações entre as mercadorias. Desgraçadamente, ademais, de um meio de circulação de mercadorias, o dinheiro em sua forma capitalista é, sobretudo, uma aposta na geração e acumulação de riqueza futura, o que envolve o pagamento de salários monetários aos trabalhadores e aquisição de meios de produção com o propósito de captura de um valor monetário acima do que foi gasto.

Se não há aposta na criação de riqueza futura, não há gasto e, se não há gasto, o circuito da renda monetária fenece. Por isso mesmo, se não há confiança na recuperação vantajosa do gasto, o potencial criador de riqueza recolhe seus impulsos criativos para repousar o dinheiro nos confortos do dinheiro como forma geral da riqueza, a preferência pela liquidez.

Em uma economia monetária, o constrangimento de recursos (real) e o constrangimento do fluxo de caixa (monetário) diferem, porque bens não são trocados por bens, mas por dinheiro ou demanda por ele (crédito). Crédito e dívida são essencialmente formas de criação de moeda como riqueza potencial. Isso significa que, no capitalismo, o dinheiro não se limita a facilitar a troca de recursos reais, mas engendra sistematicamente a multiplicação de direitos financeiros sobre esses recursos.

É possível afirmar que os três autores desenvolveram as teorias mais consistentes sobre a moeda.
Joseph Schumpeter chamou a teoria que estuda a engrenagem financeira do capitalismo de Teoria Creditícia da Moeda e não Teoria Monetária do Crédito. Não se trata de uma troca de palavras, mas de uma transposição semântica.

Para Marx, Keynes e Schumpeter, a economia em que vivemos ou tentamos sobreviver não é uma economia simples de intercâmbio de mercadorias. É uma economia mercantil, monetária e capitalista. Nela as decisões de produção envolvem inexoravelmente a antecipação de dinheiro agora para receber mais depois.

A mobilização de recursos reais, bens de capital, terra e trabalhadores depende de adiantamento de liquidez e assunção de dívidas. Para que o crescimento seja possível, disse Schumpeter, o estoque de crédito deve crescer além do requerido para operação corrente da economia capitalista.
O economista italiano Riccardo Bellofiore estabeleceu uma instigante distinção entre Dinheiro e Moeda.

Dinheiro, diz ele, é a forma geral da riqueza, poder de adquirir os elementos indispensáveis à produção de mercadorias: trabalhadores assalariados, equipamentos e materiais. No capitalismo, o Dinheiro, uma vez atirado à circulação por quem dispõe de patrimônio rentável para acessar o crédito, cria a Moeda, o fluxo monetário que paga salários, fornecedores e credores.

Sem a passagem da Potência ao Ato, diria Aristóteles, ou seja, sem a precipitação do Dinheiro no mercado com o propósito de gerar mais Dinheiro, a Moeda não gira e a economia patina. Se patina, as mercadorias não circulam, os ativos reais e financeiros avaliados "dinheiristicamente" nos balanços de bancos, empresas, famílias, padecem o risco de "perder valor" porque os mercados exigem sua "marcação em Dinheiro".

O Dinheiro de Crédito, antes riqueza potencial, circula como Moeda e reaparece nos balanços como Dinheiro-Riqueza realizado, mensurado e escriturado.

O que Marx escreveu que não escreveria considerando a economia dos dias de hoje?

Luiz Gonzaga Belluzzo - A trajetória intelectual de Marx revela um pensador e escritor dedicado a reescrever obstinadamente o que já havia escrito. Desde sua tese de doutoramento na Universidade de Iena em 1841, Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro, Marx avançou em seus escritos de jovem hegeliano, sempre inspirado pelo filósofo da Fenomenologia do Espírito e da Lógica.

Já em 1842, Marx sapecou no Rheinische Zeitung um peque texto para criticar a demanda dos industriais de Hannover por medidas protecionistas. Ele diz que "reconhecer o princípio do livre comércio é dependente do estado geral mundial e, assim, essa questão tem que ser decidida somente por um congresso de nações e não por um único governo".

Esse universalismo libertário e democrático-radical vai reaparecer, entre tantos escritos, sob outra roupagem na Questão Judaica de 1843, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, no Manifesto Comunista, de 1848, nos Grundrisse e no Capital. Isto para não falar de suas contribuições para o New York Tribune e de sua correspondência com Abraham Lincoln a respeito da luta contra a escravidão.

Imagino que ele voltaria a escrever a respeito das peripécias do capitalismo atordoado pelos poderes da finança e empenhado em precarizar os trabalhadores. Escreveria, sim, na esperança de convencer os contemporâneos que uma coisa é uma coisa (o poder da finança), e a outra coisa é a mesma coisa (o trabalho precarizado). Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo.

O que Keynes mudaria diante da realidade atual na sua opinião?

Luiz Gonzaga Belluzzo - Talvez não mudasse, mas, com argumentos mais contundentes, insistiria nas exortações que buscavam convencer os mulheres e homens das vantagens e benesses da fruição do tempo livre que o progresso capitalista promete, mas não entrega aos cidadãos:

""Devemos abandonar os falsos princípios morais que nos conduziram nos últimos dois séculos. Eles colocaram as características humanas mais desagradáveis na posição das mais elevadas virtudes. Não há nenhum país, nenhum povo que possa vislumbrar a era do tempo livre e da abundância sem um calafrio [...]. Pois fomos educados para o esforço aquisitivo e não para fruir [...]. Se avaliarmos o comportamento e as realizações das classes abastadas de hoje, as perspectivas são deprimentes [...]. Os que dispõem de rendimentos diferenciados, mas não têm deveres ou laços, falharam, em sua maioria, de forma desastrosa no encaminhamento dos problemas que lhes foram apresentados." (John Maynard Keynes, Perspectivas Econômicas dos Nossos Netos - 1930).

Os EUA são um país protecionista? Pode apontar exemplos na história? O que Alexander Hamilton, um dos pais fundadores e primeiro secretário do Tesouro americano apregoava e implantava?

Luiz Gonzaga Belluzzo - A boa história econômica ensina que os Estados Unidos têm uma longa e persistente tradição de práticas protecionistas. Os primeiros passos da caminhada protecionista estão recomendados no Relatório sobre as Manufaturas de Alexandre Hamilton, publicado em 1791.

Hamilton, então secretário do Tesouro dos Estados Unidos, fez a crítica das teorias fisiocráticas que postulavam a superioridade da agricultura. Desenvolveu uma brilhante argumentação em defesa da manufatura como fonte da ampliação da divisão do trabalho, ganhos de produtividade e de maior progresso da própria agricultura.

Pérfidas considerações sobre o celebrado liberalismo da Inglaterra pedem passagem. Na segunda metade do século XIX, depois de suspender, em 1841, a proibição de exportar máquinas e artesãos, revogar, nos idos de 1846, a proteção à sua agricultura protegida pela Corn Law, o liberal-mercantilismo da pérfida Albion comandou a expansão do comércio e das finanças internacionais.

Já dominado pelos interesses financeiros da City, o liberal-mercantilismo da Inglaterra hegemônica criou as condições para as políticas intencionais, diga-se protecionistas, de industrialização dos retardatários europeus e dos Estados Unidos.

No livro "Origens da Democracia e da Ditadura", o Barrington Moore Jr analisa a guerra civil americana a partir das relações contraditórias, mas não opostas, entre o Sul escravagista-livre-cambista e o Norte em processo de industrialização, turbinado com mão de obra assalariada e fortes doses de protecionismo.

Nas primeiras décadas do século XIX havia complementariedade entre o sul escravagista e primário-exportador e a industrialização incipiente. No movimento recíproco de expansão das "duas economias" os requerimentos da indústria, do assalariamento, da ampliação do mercado entraram em descompasso com a economia livre cambista da mão de obra escrava.

A contradição foi encaminhada para as terras do Oeste. Sob o manto protetor da distribuição gratuita de terras do Homestead Act, o desenvolvimento e a consolidação da agricultura familiar no Oeste iriam configurar um novo espaço para a expansão das relações mercantis.

Paul Bairoch, Douglas North, Charles Kindleberger e Carlo Cippola registram a persistência das práticas protecionistas americanas ao longo do século XIX e da primeira metade do século XX, até o fim da Segunda Guerra. O aumento das tarifas promovido pelo Smoot and Hawley Act em 1930 inaugurou uma sombria temporada de competição protecionista.

Ao desviar o desemprego para o território do outro, seguiram-se as desvalorizações competitivas. Iniciado com a saída da Inglaterra do padrão-ouro em 1931, o jogo de estrepar o vizinho teve sequência na desvinculação do ouro anunciada por Roosevelt em 1933.

Essas reações provocaram a contração brutal dos fluxos de comércio e suscitaram tensões nos mercados financeiros. Tais forças negativas propagavam-se livremente, sem qualquer capacidade de coordenação por parte dos governos. Assim, a economia global mergulhou numa espiral deflacionária que atingiu indistintamente os preços dos bens e dos ativos.

A contração do comércio mundial, provocada pelas desvalorizações competitivas e pelos aumentos de tarifas, deu origem a práticas de comércio bilateral e à adoção de controles cambiais. Na Alemanha nazista, tais métodos incluíam a suspensão dos pagamentos das reparações e dos compromissos em moeda estrangeira, nascidos do ciclo de endividamento que se seguiu à estabilização do marco em 1924.

Na posteridade da Segunda Grande Guerra, o projeto americano de construção da ordem econômica internacional foi concebido sob inspiração do ideário rooseveltiano. Tinha o propósito de promover a expansão do comércio entre as nações e colocar seu desenvolvimento a salvo de turbulências financeiras e de crises de balanço de pagamentos.

A ideia-força dos reformadores de Bretton Woods sublinhava a necessidade de criação de regras para garantir a expansão do comércio e o ajustamento dos balanços de pagamentos, mediante o adequado abastecimento de liquidez para a cobertura de déficits, de forma a evitar a propagação de forças deflacionárias e tentações do protecionismo.

Desde o fim dos anos 1970, a reestruturação do capitalismo envolveu mudanças profundas no modo de operação das empresas, na integração dos mercados e nas relações entre o poder da finança e a soberania do Estado. O verdadeiro sentido da globalização é o acirramento da rivalidade entre empresas, trabalhadores e nações, disputa feroz inserida em uma estrutura financeira auto referencial, ocupada em satisfazer seus próprios apetites.

Em suas consequências, a severa recessão que machucou o planeta em 2008 denuncia as fragilidades do arranjo politico-econômico da globalização. Não por acaso, ímpetos protecionistas irromperam em todos os cantos da Terra. O gesto de Trump é a repetição como farsa da tragédia encenada pela reforma tarifária imposta pelo Smoot-Hawley Act.

Os comentários dos especialistas e as matérias do jornalismo anunciam em tom alarmista: não vai dar certo!! Antes de arriscarem suas reputações com previsões, tão acuradas quanto desacreditadas, deveriam indagar de seus botões: o que deu errado?

Qual a gênese do Estado de bem-estar social nos anos dourados de pós-guerra? É possível algo igual atualmente?

Luiz Gonzaga Belluzzo - No imediato pós-guerra, forças políticas importantes que combateram o fascismo sabiam muito bem que a sobrevivência da democracia não dependia apenas da restauração das instituições e dos mecanismos de representação popular, do equilíbrio de poderes e do controle público dos atos das autoridades.

A experiência negativa dos anos 20 e 30 deixou uma lição: o capitalismo da grande empresa e do capital financeiro levaria inexoravelmente a sociedade ao limiar de outras aventuras totalitárias, caso não fosse constituída uma instância pública de decisão capaz de coordenar e disciplinar os megapoderes privados.

A ameaça à liberdade, dizia Karl Mannhein, não vem de um governo que é "nosso", que elegemos e que podemos derrubar, senão das oligarquias sem responsabilidade pública.

As forças sociais e os homens de poder incumbidos de reconstruir as instituições capitalistas do pós-guerra estavam prenhes desta convicção. Para evitar a repetição do desastre era necessário, antes de tudo, constituir uma ordem econômica internacional capaz de alentar o desenvolvimento, sem obstáculos, do comércio entre as nações, dentro de regras monetárias que garantissem a confiança na moeda-reserva, o ajustamento não deflacionário do balanço de pagamentos e o abastecimento de liquidez requerido pelas transações em expansão.

Tratava-se, portanto, de erigir um ambiente econômico internacional destinado a propiciar um amplo raio de manobra para as políticas nacionais de desenvolvimento, industrialização e progresso social.
A construção e a gestão desse ambiente internacional favorável encontraram resposta adequada nas reformas promovidas nas instituições e nas políticas dos Estados Nacionais.

As novas instituições e as políticas econômicas do Estado Social estavam comprometidas com a manutenção do pleno emprego, com a atenuação, em nome da igualdade, dos danos causados ao indivíduo pela operação sem peias do "mecanismo econômico". Eric Alliez (1988) diz, com razão, que durante mais de duas décadas realizou-se a criação de um mundo fundado sobre o direito ao trabalho, que tinha como objetivo o pleno emprego, o crescimento dos salários reais.

"Promover esta dinâmica, onde o crescimento dos salários ocorre em benefício dos lucros que eles engendravam, implica uma modificação do papel do Estado. Este deve, não apenas ratificar e garantir os acordos de produtividade, mas também manter, quando não planificar, a dinâmica revestida por eles: por um lado estimulando o consumo dos assalariados através do aumento das transferências sociais e, por outro, sustentado os investimentos produtivos - controle das taxas de juros e política de investimentos públicos".

A concepção de um desenvolvimento nacional, no marco de uma ordem internacional estável e regulada, não era uma fantasia idiossincrática, mas decorria do "espírito do tempo", forjado na reminiscência da experiência terrível das primeiras quatro décadas deste século. Tampouco era fortuito o papel atribuído à ação do Estado no estímulo ao crescimento, na prevenção das instabilidades da economia e na correção dos desequilíbrios sociais.

Qual é o maior erro dos liberais e dos neoliberais?

Luiz Gonzaga Belluzzo - Erro? Nos últimos quarenta anos, o neoliberalismo só promoveu acertos para os ricos e poderosos. Para o resto da turma sobraram as dores da insegurança e as ameaças de mais reformas disfuncionais para a construção de uma economia mais inclusiva e igualitária. Mas isso não é um erro do neoliberalismo, senão a consequência incontornável de seu modus operandi.

Ao responder que não há nada errado, assumo um risco nada desprezível. Essa foi a sensação que me perseguiu durante e após a leitura do best seller The Myth of Capitalism, de Jonathan Tepper. O autor encara a morte da concorrência perfeita como o epitáfio do verdadeiro (sic) capitalismo.

Em minha modesta opinião, depois de libertado das disciplinas e amarras sociais que o domesticaram nos Trinta Anos Gloriosos do imediato Pós-Guerra, o velho capitalismo reconciliou-se com sua natureza inquieta e criativa. Tão inquieta e criativa que rapidamente transmutou a concorrência perfeita em concorrência monopolista.

Livre, leve e solto em seu peculiar dinamismo, amparado em suas engrenagens tecnológicas e financeiras, o Velho Cap promoveu e promove a aceleração do tempo e o encolhimento do espaço. Esses fenômenos, gêmeos, podem ser observados na globalização, na financeirização e nos processos de produção da indústria 4.0.

A nova fase da digitalização da manufatura é conduzida pelo aumento do volume de dados, a ampliação do poder computacional e conectividade, a emergência de capacidades analíticas aplicada aos negócios, novas formas de interação entre homem e máquina e melhorias na transferência de instruções digitais para o mundo físico, como a robótica avançada e as impressoras 3D.

É intenso o movimento de automação baseado na utilização de redes de "máquinas inteligentes". Nanotecnologia, neurociência, biotecnologia, novas formas de energia e novos materiais formam o bloco de inovações com enorme potencial de revolucionar outra vez as bases técnicas do capitalismo. Todos os métodos que nascem dessa base técnica não podem senão confirmar sua razão interna: são métodos de produção destinados a acelerar a produtividade social do trabalho e intensificar a rivalidade empresarial na busca da ocupação dos mercados.

Os avanços da inteligência artificial, da internet das coisas e da nanotecnologia, das novidades do 5G, associaram-se ao deslocamento espacial da grande empresa e acentuaram as assimetrias entre países, classes sociais e empresas.

A globalização financeira e a deslocalização produtiva são filhos diletos da estratégia competitiva da grande empresa comandada pela fúria inovadora e concentradora dos mercados financeiros, em prejuízo da capacidade de regulação dos Estados Nacionais.

Os movimentos competitivos das empresas financeirizadas que impulsionam as cadeias globais de valor executam a abstração da vida, fragilizando os espaços jurídico-políticos nacionais onde se abrigam os mortais cidadãos.

Os bancos e os fundos são a cola do sistema ao fazer 95% de toda a movimentação financeira: transações cambiais, hedge, pagamentos, transações comerciais, investimentos. É uma ilusão imaginar que relações entre a economia real e a economia monetário-financeira são de oposição e exterioridade. São relações contraditórias, mas não opostas, inerentes à dinâmica do capitalismo em seu movimento de expansão, transformação e reprodução.

Aí estão inscritas como cláusulas pétreas a concentração e a centralização do controle do capital monetário em instituições de grande porte, cada vez mais interdependentes, que submetem ao seu domínio a produção e a distribuição da renda e da riqueza.

As tendências da dinâmica capitalista reafirmam sua "natureza" como modalidade histórica cujo propósito é a acumulação de riqueza abstrata, monetária.

O capital monetário concentrado nas grandes instituições financeiras apoderou-se da gestão empresarial, impondo práticas destinadas a aumentar a participação dos ativos financeiros na composição do patrimônio, inflar o valor desses ativos e conferir maior poder aos acionistas. A lógica da valorização dos estoques de riqueza financeira passou a comandar o movimento das "economias reais".

Quais os três maiores erros da esquerda no Brasil?

Luiz Gonzaga Belluzzo - Vou responder relembrando os dias de desempenho e empenho democrático do Partido Comunista Italiano no pós-guerra . Os mais velhos talvez se lembrem dele e os mais jovens deveriam saber quem foi Enrico Berlinguer. Eleito em março de 1972 secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI), Berlinguer foi esculpido pelo cinzel do historiador Carlo Ginsburg como "um aristocrata de origem sarda que manifestava aversão pelo culto da personalidade e desprezo pela retórica".

A história da Itália e da Europa certamente não deixou de registrar a visão e a coragem de Enrico Berlinguer ao aderir, nos anos 70 do século passado, à ideia do Compromesso Stórico, um projeto democrático de avanço econômico, social e político. No biênio 1974-1975, a crise econômica mundial foi acompanhada do enfraquecimento e queda das ditaduras em Portugal e na Espanha.

Os partidos de esquerda desses países se aproximaram da via democrática, manifestando um distanciamento crescente em relação à União Soviética. Em julho de 1975, espanhóis e portugueses proclamaram sua adesão à paz e à liberdade "como um compromisso estratégico e não como uma manobra tática".

Na eleição italiana de 1976, democrata-cristãos e comunistas dividiram fraternalmente 70% dos votos dos italianos (36% para aqueles, 34% para estes) e aproximaram o Compromesso Stórico da realidade. Isso foi suficiente para assustar os americanos e mobilizar os maximalistas "criminosos" à esquerda e à direita para ações de terror.

A turbulência dos "tolos" culminou, em 1978, com o assassinato do líder democrata-cristão Aldo Moro, que negociava com Berlinguer. Moro foi assassinado pelas Brigadas Vermelhas, sob o olhar complacente do primeiro-ministro Giulio Andreotti, também democrata-cristão.

Na configuração do projeto eurocomunista, pesaram a herança gramsciana, a crítica dos intelectuais italianos à experiência soviética e, mais imediatamente, o choque provocado pelo golpe militar desferido contra o governo de Salvador Allende no Chile. Resistir aos arreganhos violentos da extrema-direita era uma façanha inspirada na aliança democrática dos anos 1943-1947.

Nesse período, as forças antifascistas reuniram-se numa grande coalizão que culminou com o referendo de 2 de junho de 1946.

Às urnas incumbiria declarar a preferência dos italianos pela monarquia ou pela república e, ao mesmo tempo, eleger os membros da Assembleia Constituinte exclusiva, que conclui seus trabalhos em 1948. Em seu primeiro artigo, a nova Constituição dizia ser a Itália uma república baseada no trabalho, assegurado o direito de todos os italianos a este no artigo 4º.

Entre 1946 e 1948, a Itália viveu uma crise econômica, social e política. Assim como na Alemanha, o ronco da inflação e a ameaça de uma crise da lira acompanharam a desmontagem do aparato da economia de guerra. A inflação chegou aos 50% nos primeiros seis meses de 1947. A agitação sindical aumentou a temperatura social e política. Para juntar ofensa à injúria, o governo americano de Harry Truman aumentou a pressão: exigia a saída dos comunistas do governo do democrata-cristão De Gasperi.

Recém-nomeado, o ministro do Tesouro Luigi Einaudi impôs um congelamento de 25% dos depósitos bancários e promoveu uma forte contração do crédito. Em 1948, a média mensal de desempregados chegou a mais de 2 milhões de trabalhadores. Mas já nos primeiros três meses de 1948, o Plano Marshall derramou US$ 176 milhões na economia italiana. A despeito da ajuda externa, a economia italiana permaneceu deprimida até meados de 1950.

O então secretário-geral do PCI, Palmiro Togliatti, insistiu em sua discordância com a utilização de métodos "extraparlamentares" para enfrentar a crise e com as consequências da política de estabilização levada a cabo pelo liberal Luigi Einaudi. Essa atitude de contemporização estratégica não impediu que o fanático Antonio Pallante atirasse contra o líder do PCI em 14 de julho de 1948. Uma rebelião de massas sacudiu a Itália. Mas Togliatti e a direção do partido apostaram na consolidação da democracia e na aliança com os setores mais progressistas da democracia-cristã.

E do PT?

Luiz Gonzaga Belluzzo - Tenho a impressão que Lula em algum momento da vida recebeu os espíritos de Berlinguer e Togliatti, para desagrado de muitos grupos de esquerda que não conseguem exorcizar o espírito de Stalin que habita suas almas anacrônicas.

Lula voltando vai compor com o mercado financeiro como fez em Lula 1 com Palocci?

Luiz Gonzaga Belluzzo - Depois de reafirmar o "orgulho com seu governo, período em que os empresários mais ganharam dinheiro, os trabalhadores mais ganharam aumento de salários, em que geramos mais empregos etc.", Lula assestou baterias contra "eles, o bando de yuppies, jovens bem aquinhoados que vivem ganhando dinheiro através dos bônus, de não sei das quantas, para vender papel, sem vender um produto".

Para essa turma, a eleição de Lula foi a realização do inaceitável. Pouco importa se ganharam muita grana e abasteceram generosamente seus cofres com inúteis e danosas apostas nos mercados de derivativos de ca?mbio e juros, sempre e cada vez mais respondendo aos movimentos dos mercados financeiros globalizados.

O filósofo Franco Berardi vai além e conclui que o vendaval de abstrações e imediatismos produzido pelos mercados financeiros, pela mídia e pelas tecnologias de informação capturou as energias cognitivas da sociedade. De um lado, diz ele, são ondas avassaladoras de sofrimento mental e, de outra parte, a depressão e o rebaixamento intelectual encontram remédio no fanatismo e no fascismo.

Qual a sua intuição sobre a política econômica de Lula se eventualmente ele se eleger em 2022?

Luiz Gonzaga Belluzzo - Recentemente ele disse em uma entrevista: na próxima eleição a Carta aos Brasileiros vai expor as conquistas do meu governo. A mensagem é clara. Ele vai se dirigir aos brasileiros massacrados pelo avanço da desigualdade, da pobreza, do desemprego e da precarização do trabalho.

Imagino que vai combinar a capacidade de geração de renda e emprego dos programas sociais com a recuperação do investimento em infraestrutura e com os cuidados com a reindustrialização associados a programas de ciência e tecnologia.

Ademais, tenho a impressão que o Lula vai manter boas relações com o Joe Biden e com o Xi Jinping. Nas relações internacionais ele é um craque meio-campista.

O que acha de Paulo Guedes?

Luiz Gonzaga Belluzzo - Nos idos de 2019, o já ministro Paulo Guedes mostrou os dentes escovados com a pasta do liberalismo econômico: "Não se assustem se alguém pedir o AI-5 contra protestos". A ameaça de Guedes expõe as entranhas de um certo Brasil.

Depois da queda da ditadura, a maioria dos nostálgicos do "prende e arrebenta" reprimia sua adesão ao pau de arara nos desvãos escuros da alma, onde se acoita o pudor sem-vergonha, conhecido na praça como hipocrisia. Na era Bolsonaro, os "destemidos" das redes sociais proclamam abertamente a adesão à turma do "é isso mesmo, ferro nos desordeiros".

Os habitantes mequetrefes da pancadaria não suportam que a liberdade das pessoas interfira na liberdade dos mercados. As pessoas, gente, humanos, eles e elas, aqueles que começaram a aparecer nos aeroportos, nos supermercados, nos shopping centers, sentem que os de cima, só um pouco acima, menosprezam "os outros, aqueles que não são o que nós somos". Os "outros" convivem no mesmo território, mas não frequentam a mesma sociedade.

Os patronos de Guedes, Friedrich Hayek e Milton Friedman não se assustariam com o AI-5. Sempre empenhados em elevar a desembaraçada troca de mercadorias ao pináculo das liberdades, recomendavam restrições à democracia, caso a irracionalidade das massas possa ameaçar a liberdade dos mercados.

Qual a melhor forma de realizar uma possível reindustrialização no Brasil?

Luiz Gonzaga Belluzzo - Não vai ser fácil. A crise que hoje machuca a economia brasileira é, sobretudo, uma crise de inteligência estratégica. Bolsonaro, Paulo Guedes e seus "seguidores", dentro e fora do governo, empenham-se na desconstrução do arcabouço institucional que sustentou o desenvolvimento do país ao longo de cinco décadas. Desde os anos 30 do século passado, a trajetória da nossa economia confirma que a coordenação do Estado é crucial para a obtenção de taxas de crescimento elevadas.

O Brasil ocupava, então, a liderança no torneio mundial do crescimento amparado em um processo de industrialização que avançou para dotar o País de uma estrutura produtiva diversificada e moderna. Pindorama era a nação mais industrializada entre os ditos "emergentes".

Descontada a década perdida dos anos 1980, submetida às agruras da crise da dívida externa, o desenvolvimento posterior foi modesto. O primeiro ciclo, o dos anos 1990, moveu-se no território do baixo dinamismo e da regressão da estrutura industrial. Esvaiu-se no colapso cambial de 1999.

O segundo ciclo, apoiado no projeto de inclusão social e expansão do mercado interno, foi sustentado pelos preços das commodities, mas fragilizado pela valorização cambial. Sobreviveu bravamente à crise global de 2008. Perdeu forças nos anos que antecederam à crise de 2015, deflagrada pelo ajuste reclamado pela turma da bufunfa e executado pela dupla Rousseff-Levy.

Desde então, o debate brasileiro trilhou os caminhos das simplificações binárias. Inspirados no filme Querida, Encolhi as Crianças, não são poucos aqueles que recomendam "encolher o Estado". Cortar, desmobilizar e privatizar são os verbos mais conjugados nos gabinetes dos palácios e da finança. A secretaria que cuidava das Privatizações ostentava também a alcunha de Desinvestimentos.

Vamos olhar para a frente: a reindustrialização vai certamente exigir políticas distintas daquelas executadas nos anos do nacional-desenvolvimentismo. A ênfase, agora, deve ser colocada na busca da construção de vantagens dinâmicas apoiadas em programas de inovação, articulados ao agronegócio, às novas fontes de energia, à infraestrutura e às grandes demandas sociais, como educação, saúde, mobilidade urbana e segurança.

A suposta contradição entre Estado e mercado que impregna o discurso dos paleoliberais, desconsidera as coordenações e simbioses existentes entre ambos, em qualquer projeto de desenvolvimento nacional, como demonstrado no livro da professora da Universidade de Sussex, Mariana Mazzucato: The Entrepreneurial State: Debunking public vs. private sector myths.

Assim como no caso das tecnologias embarcadas no iPhone - a internet, o GPS, o touch-screen display e até o comando de voz Siri -, todas tiveram financiamento público.

A leitura do Enterpreneurial State de Mariana Mazzucato poderia ser acompanhada do livro Subsidies to Chinese Industry: Capitalism, business strategy and trade policy, de Usha Haley e George Haley. Os Haley tratam das relações entre as empresas e as políticas governamentais na China, recorrendo a uma exaustiva investigação empírica, sem apelar para o blá-blá-blá ideológico e, não raro, hipócrita, da falsa oposição entre Estado e mercado, leia-se, entre concorrência e planejamento de longo prazo na experiência mais fascinante do capitalismo contemporâneo.

Os estudos de Mazzucato e dos Haley cuidaram de sublinhar as relações peculiares entre os Estados Nacionais, os sistemas empresariais, os programas de inovação tecnológica e a "inserção internacional".

Procuraram chamar a atenção para a centralidade da "organização capitalista" em que prevalecem nexos, digamos, "cooperativos" nas relações entre as empresas e as burocracias civis, militares e de segurança encarregadas de fomentar e administrar o sistema de avanço tecnológico (P&D).

Neste momento, enquanto o Brasil se prepara para aprovar medidas que asfixiam seu Orçamento, Alemanha, Coreia, Japão, China e EUA se preparam para o salto da indústria 4.0, com forte integração e apoio do Estado e da academia na área de P&D.

Por que parte da elite empresarial e do mercado financeiro repelem a reindustrialização? Eles têm a mesma tese de Eugênio Gudin?

Luiz Gonzaga Belluzzo - Ainda nos anos 20, o brasileiro Roberto Simonsen perseguiu o projeto de industrialização com a pertinácia dos obstinados. Em seu discurso inaugural na fundação do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo, em 1928, Simonsen proclamou que "no atual estágio da civilização a independência econômica de uma grande nação, seu prestígio e sua atuação política como povo independente no concerto entre as nações só podem ser tomados na consideração devida possuindo esse país um parque industrial eficiente, na altura de seu desenvolvimento agrícola".

O discurso recebeu a reprovação agressiva das classes conservadoras e de seus ideólogos. Em seu livro "Três Industriais Brasileiros", o grande Heitor Ferreira Lima reproduz o artigo de um comentarista da imprensa paulistana. Dizia o sábio: "Não temos condições para o desenvolvimento industrial, porque somos um país de analfabetos, com imigração de analfabetos e ainda em anarquia política, econômica e financeira... o problema do Brasil consiste em aproveitar suas terras, as mais vastas, inexploradas do globo".

Não foram outros os argumentos de Eugênio Gudin, também engenheiro-economista como Roberto Simonsen, na célebre Controvérsia do Planejamento Econômico de 1944.

Na visão da turma anti-industrialista, os defensores das políticas industriais insistem em ilusões, tais como a ocorrência da Revolução Industrial no final do século XVIII. A humanidade, até então sossegada nos misteres do arado e do pastoreio, foi abalroada por esse acontecimento infausto que despertou os devaneios de Alexander Hamilton, nos Estados Unidos, com seu Relatório sobre as Manufaturas e as truculências de Otto von Bismark, encantado com os maquinismos e a ferrovia.

O grande historiador Carlo Cipolla afirmou que a vida dos Homens atravessou dois momentos cruciais: o neolítico e a Revolução Industrial. No neolítico, os povos abandonaram a condição de "bandos selvagens de caçadores" e estabeleceram as práticas da vida sedentária e da agricultura.

Entre as incertezas e brutalidades da "vida natural", tais práticas difundiram condições mais regulares de subsistência dos povos e assentaram as bases da convivência civilizada. Podemos afirmar que ao longo de milênios as sociedades avançaram lentamente nas técnicas de gestão da terra, desenvolvidas à sombra de distintos regimes sociais e políticos e, portanto, sob formas diversas de geração, apropriação e utilização dos excedentes.

"A Revolução industrial', escreveu Cipolla, "transformou o Homem agricultor e pastor no manipulador de máquinas movidas por energia inanimada". A ruptura radical no modo de produzir introduziu profundas alterações no sistema econômico e social. Aí nascem, de fato, o capitalismo, a sociabilidade, a urbe moderna e seus padrões culturais. A diferença entre a vida moderna e as anteriores decorre do surgimento do sistema industrial que não só cria novos bens de consumo e os bens instrumentais para produzi-los, como suscita novos modos de convivência, novas formas de "estar no mundo".

A indústria não pode ser concebida como mais um setor ao lado da agricultura e dos serviços. A ideia da revolução industrial trata da constituição histórica de um sistema de produção e de relações sociais que subordinam o desempenho da economia à sua capacidade de gerar renda, empregos e criar novas atividades. O surgimento da indústria como sistema produção apoiado na maquinaria endogeniza o progresso técnico e impulsiona a divisão social do trabalho, engendrando diferenciações na estrutura produtiva e promovendo encadeamentos intra e inter-setoriais.

Além de sua permanente auto-diferenciação, o sistema industrial deflagra efeitos transformadores na agricultura e nos serviços. A agricultura contemporânea não é mais uma atividade "natural" e os serviços já não correspondem ao papel que cumpriam nas sociedades pré-industriais. O avanço da produtividade geral da economia não é imaginável sem a dominância do sistema industrial no desenvolvimento dos demais setores.

Os autores do século XIX anteciparam a industrialização do campo e perceberam a importância dos novos serviços gestados nas entranhas da expansão da indústria. Não há como ignorar, por exemplo, as relações umbilicais entre a Revolução Industrial, a revolução nos Transportes e as transformações dos sistemas financeiros no século XIX. São reconhecidas as interações entre a expansão da ferrovia, do navio a vapor e o desenvolvimento do setor de bens de capital apoiado no avanço da indústria metalúrgica e da metalmecânica e na concentração da capacidade de mobilização de recursos líquidos no bancos de negócios.

A história dos séculos XIX e XX pode ser contada sob a ótica dos processos de integração dos países aos ditames do sistema mercantil-industrial originário da Inglaterra. Essa reordenação radical da economia exigiu uma resposta também radical dos países incorporados à nova divisão internacional do trabalho.

Para os europeus retardatários, para os norte-americanos e japoneses e mais tarde para os brasileiros, coreanos, chineses, russos e outros, a luta pela industrialização não era uma questão de escolha, mas uma imposição de sobrevivência das nações, de seus povos e de suas identidades. Paradoxalmente, a especialização de alguns países na produção de bens não industriais é fruto da própria diferenciação da estrutura produtiva capitalista à escala global comandada pela dominância do sistema industrial.

Este é o caso de países dotados de uma relação população/ recursos naturais favorável, como Austrália, Nova Zelândia, Uruguai, Chile. Essa especialização decorre da própria divisão do trabalho suscitada pela expansão do sistema industrial.