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Josias de Souza

Pandemia deve arruinar Presidência de Bolsonaro

                                SERGIO LIMA/AFP
Imagem: SERGIO LIMA/AFP

Colunista do UOL

14/06/2020 02h08

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Confrontado com os desafios impostos pela pandemia, o presidente da República deveria se desconectar de suas redes sociais por um instante para se concentrar num conto de Ernest Hemingway. Chama-se 'As Neves do Kilimanjaro'. Começa com um esclarecimento:

"Kilimanjaro é uma montanha coberta de neve, a 6 mil metros de altitude, e diz-se que é a montanha mais alta da África", anotou Hemingway. "O seu pico ocidental chama-se 'Ngàge Ngài', a Casa de Deus. Junto a este pico encontra-se a carcaça de um leopardo. Ninguém ainda conseguiu explicar o que procurava o leopardo naquela altitude."

O leopardo do conto serve de metáfora para muita coisa. Tanto pode simbolizar a busca romântica pelo inalcançável como pode representar o espírito de aventura levado às fronteiras da afecção, da insanidade.

O Planalto é o cume da política brasileira. Seus inquilinos chegam imaginando dispor de superpoderes. No caso de Bolsonaro, o coronavírus ajudou a desfazer uma ilusão que costuma acometer todos os presidentes: a ilusão de que presidem.

Num instante em que a pandemia desgoverna a conjuntura, infectando e matando em escala industrial, caberia ao presidente interrogar os seus botões: Por que diabos escalei o ápice da política? Qual é, afinal, a minha missão?

O pedaço do mapa que Bolsonaro mais ama é o trecho onde estão assentados os Estados Unidos. Pois se reparasse na história do país de sua predileção, Bolsonaro notaria que a melhor maneira que os presidentes americanos têm de unir a nação em seu apoio é declarar guerra a algum inimigo externo.

O ataque a outro país costuma entusiasmar os americanos, dissolvendo as divisões internas. Se tivesse liderado a guerra contra o vírus, Bolsonaro seria hoje um político maior do que aquele deputado do baixo clero que as circunstâncias levaram ao Planalto. Com uma vantagem: não precisaria bombardear a Argentina. Ou a Venezuela.

O presidente preferiu, entretanto, não presidir. Bolsonaro adotou diante do vírus a tática do avestruz. Para não tomar conhecimento da realidade, enfiou a cabeça na sua presunção de superioridade.

Partindo de uma estratégia rudimentar —a transferência de responsabilidades para prefeitos e governadores—, Bolsonaro chegou a uma conclusão equivocada. Imaginou que estaria blindado contra a atmosfera de velório coletivo e os efeitos da ruína econômica.

Sempre que é questionado sobre sua inércia, o presidente afirma que o Supremo Tribunal Federal o proibiu de agir, transferindo a gerência da crise para governadores e prefeitos. É conversa mole.

A Suprema Corte apenas reconheceu, em decisão unânime, que estados e municípios têm poderes para tomar providências como o isolamento social e o fechamento do comércio durante a pandemia. Medidas que Bolsonaro ameaçava desfazer por decreto.

Durante o julgamento, os ministros do Supremo esclareceram que a decisão não eximia Bolsonaro de suas responsabilidades. É inconcebível, por exemplo, que o presidente não tenha instalado um comitê de crise, com representantes de governadores e prefeitos.

É inacreditável que o Ministério da Saúde não tenha publicado até hoje um plano de manutenção e de saída do isolamento social. Algo que contemplasse as diferenças regionais e fixasse parâmetros a serem seguidos em cada estágio da pandemia.

O negacionismo de Bolsonaro evoluiu da omissão para a sabotagem. É notável o refinamento, o cuidado, o acabamento extremo com que o governo atingiu a irresponsabilidade sanitária. Nela, misturam-se desde a desmontagem do Ministério da Saúde até o incitamento à invasão de hospitais estaduais e municipais por bolsonaristas guindados pelo "mito" à condição de fiscais.

Bolsonaro não deveria se preocupar com a avaliação de governadores e prefeitos. Eles serão implacavelmente julgados pelos erros e acertos que cometem na gestão da crise sanitária. O presidente ajudaria a si mesmo se cuidasse do seu próprio desempenho, que também será perscrutado pelos brasileiros.

Ironicamente, o Brasil de Bolsonaro logo estará disputando com a América de Trump a primeira posição no pódio mundial dos mortos e infectados. Num cenário assim, a incapacidade do presidente de prover respostas à altura dos desafios que o assediam pode virar instinto suicida.

No futuro, quando os arqueólogos forem escavar esse pedaço da história nacional, encontrarão sob os escombros de uma Presidência remota uma carcaça que será tão inexplicável quanto a do leopardo de Hemingway. Nenhum estudioso conseguirá dizer o que procurava um capitão inepto nas alturas do Planalto.