Fim de Crivella enfraquece projeto da Universal

Bispo licenciado da igreja Universal, Marcelo Crivella foi à prefeitura do Rio de Janeiro como parte do projeto político da logomarca religiosa comandada por seu tio, Edir Macedo. Com a prisão de Crivella a nove dias do encerramento do mandato, saiu pelo ladrão o projeto que misturou fé e política.

Crivella fez questão de estabelecer uma confusão entre a poltrona de prefeito e o púlpito de missionário. Destronado como chefe de uma organização criminosa, o personagem desce à crônica carioca como uma evidência de que o eleitor fez bem ao parar de confundir certos pastores com pastores certos.

Na campanha municipal de 2016, Crivella prometera governar para todos. Era lorota. Abriu um a porta de emergência para atender nos hospitais municipais os irmãos selecionados por pastores. Bastava "falar com a Márcia", a assessora destacada para furar a fila.

Numa cruzada moralista, Crivella implicou com o Carnaval. Retirou a prefeitura da festa. Jamais compareceu a um desfile. Deu as costas para o Rei Momo. Entrevistado pela Folha em março de 2019, Crivella foi submetido a uma pergunta singela: Por que o senhor não participa da entrega da chave ao Rei Momo?

Escondeu-se atrás de um lote de interrogações marotas: "...A vida inteira os prefeitos entregaram a chave da cidade. Melhorou o nosso nível no Ideb [índice de qualidade da educação]? A desfavelização? Por que eu tenho que dar a chave?" O repórter emendou, de bate-pronto: A tradição?

E Crivella: "A cidade do Rio de Janeiro é o epicentro do Brasil de corrupção e violência. Só vamos vencer essa crise com mudanças de costumes. Não cabe mais aos líderes políticos uma dimensão folclórica, carnavalesca do cargo público. Temos que voltar, os homens públicos, a gostar das coisas simples, a dar valor à solidariedade, à humildade, à confiança e à austeridade."

A investigação que retirou Crivella do cargo, transferindo-o para a cadeia, expõe um esquema de cobrança de propinas de fornecedores do município. Quer dizer: Crivella sempre soube que quem transformou o Rio em antro de corrupção não foram os passistas da Marques de Sapucaí, mas os integrantes do bloco de sujos que, como ele, sambaram dentro dos cofres públicos.

Representada na política pelo partido Republicanos, a Universal fez duas grandes apostas na eleição municipal de 2020. Numa, tentou eleger Celso Russomanno prefeito de São Paulo. Malogrou no primeiro turno. Noutra, empenhou-se para reeleger Crivella no Rio. Morreu na praia do segundo turno.

Crivella já guerreia no Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, para deixar a cadeia. Logo será solto. Mas sua prisão, ainda que curta, representa uma espécie de terceiro turno da Universal. Injeta escândalo dentro da derrota. Entusiasta de Russomanno e apoiador envergonhado de Crivella, Jair Bolsonaro tornou-se sócio do fiasco.

A Universal e o seu braço político foram parceiros de Lula e Dilma. Crivella comandou o Ministério da Pesca no governo da "presidenta". Com a derrocada do petismo, os irmãos passaram a cultuar Bolsonaro. Deu no que está dando.

Sempre que é confrontado com uma dificuldade, Bolsonaro costuma retirar do bolso do colete um versículo multiuso que extraiu do Evangelho de João: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará."

A despeito do esforço do Planalto, talvez seja tarde para se libertar da associação com o vexame. Seja como for, o projeto político da Universal não morre com a derrocada de Crivella. A vida segue.

O partido da igreja já embarcou na canoa de Arthur Lira, o réu do centrão que disputa a presidência da Câmara com o apoio de Bolsonaro. À medida que a verdade emerge, vai ficando entendido que Deus existe. Mas ele pode estar em outra sintonia.

-- Atualização feita às 22h31 desta terça-feira (22/12): O presidente do STJ, ministro Humberto Martins, converteu o encarceramento de Crivella em prisão domiciliar, com tornozeleira eletrônica.