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Bolsonaro desrespeita o Brasil ao cancelar almoço com presidente português
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Receitar cloroquina ou cuspir nas urnas que o elegeram são hábitos que se tornaram parte da paisagem na presidência miliciana de Bolsonaro. Mas até aí o capitão envergonha com sua bestialidade apenas a si mesmo e às autoridades que o tratam como um ser inimputável. A coisa muda de figura quando a estupidez de Bolsonaro o leva a cancelar um almoço no Itamaraty com o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, porque ele incluiu um encontro com Lula na agenda de sua viagem a esta terra descoberta por Cabral. Trata-se agora de um vexame que desrespeita o Brasil, não o desconvidado.
Tratar a falta de educação como mais uma truculência diplomática seria um equívoco. É certo que a infecção causada pelo personalismo ideológico impõe prejuízos ao país e desvirtua princípios seculares que guiavam a diplomacia brasileira. Dessa vez, entretanto, o caso é mais grave. A afasia de Bolsonaro o impede de notar que a grandeza da sua vista curta e a generosidade com que maneja seus interesses mesquinhos não são toleráveis fora do cercadinho. Até um presidente limitado deveria delimitar suas limitações, para certificar-se de que elas são suas, não do país que ele desgoverna.
Figurinha fácil nas praias do Algarve, o presidente Marcelo de Sousa excedeu-se em cortesia e hospitalidade ao conversar com um casal de patrícios. "Brasileiro em Portugal é português", ele afagou. "São irmãos. E são irmãos muito queridos, que vivem aqui faz muito tempo. Eu não esqueço o que têm feito criando riqueza e justiça em Portugal." Eis o ponto: ao desconvidar o presidente português para a aventura de dividir um prato de feijão no Itamaraty, Bolsonaro bateu a porta na cara de um irmão. Fora do cercadinho, isso é uma falta de educação intolerável.
Sempre houve uma grande confusão entre público e privado no Brasil. Agora, entretanto, há uma radicalização. O privado se resumiu numa família, num grupo cujo patriarca tenta fazer o Brasil inteiro atravessar a rachadinha dos seus interesses escusos, migrando da República para um império que tem o privado como sistema e a empulhação como método.
"Resolvi cancelar o almoço que ele teria comigo, bem como toda a programação", disse Bolsonaro à CNN. "Ele teria uma reunião com o Lula." Por sorte, Marcelo de Sousa conhece o Brasil o bastante para perceber que o país é grande demais para caber no vão estreito da Presidência de Bolsonaro. Ainda no aeroporto de Lisboa, minutos antes de embarcar para o Brasil, na sexta-feira, o presidente português desdenhou: "Não vale perder um segundo com um almoço quando há amizade entre os povos. O que importa é a amizade entre os povos, não a ligação entre os políticos."
O vexame será útil se levar o brasileiro a desperdiçar um pedaço do seu final de semana na busca de informações sobre a biografia do presidente de Portugal, um político tão popular quanto os doces portugueses. De centro-direita, Marcelo de Souza advoga a tese segundo a qual a união deve prevalecer sobre a polarização com a esquerda. Costuma ser flagrado em situações inusuais para um chefe de Estado. Numa ocasião, foi fotografado usando máscara na fila de um supermercado. Noutra, ganhou as manchetes ao salvar duas jovens que se afogavam após cair da canoa.
Na pandemia, colocou a vida à frente da economia. "Sem vida e sem saúde o combate econômico não pode ser travado com sucesso", disse. Ficou rouco de tanto manifestar solidariedade às famílias dos mortos e agradecimentos aos portugueses que, segundo ele, mantiveram Portugal "funcionando". Gente como médicos, caminhoneiros e agricultores. No auge da guerra contra o vírus, pregou a união dos "órgãos de soberania". Declarou: "Presidente, Parlamento, governo, partidos solidários. Aquilo que nos une é muitíssimo mais importante do que aquilo que nos pudesse dividir."
A voz de Marcelo de Sousa jamais soou numa frase questionando a eficácia de vacinas ou a colocando em dúvida o sistema eleitoral português. Para ele, "é sempre atual a luta pela liberdade. É sempre atual, no presente e no futuro. Mas é mais atual hoje, quando regressam ideias antiliberais, quando surgem as chamadas democracias iliberais ou antiliberais, ou seja, não democráticas".
Se ao final da pesquisa sobre Marcelo de Souza o brasileiro for assaltado por um sentimento de inveja e perceber que Bolsonaro desrespeitou o Brasil no instante em que cancelou o almoço com presidente português, a truculência terá servido para alguma coisa. Ficará entendido que a melhor hora para escolher um presidente adequado é três anos e meio atrás. A segunda melhor hora é em outubro.
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