Josias de Souza

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Opinião

'Tô nem aí' de Tarcísio é parente próximo do 'e daí?' de Bolsonaro

Só uma coisa é mais dura diante da morte do que a suavidade da indiferença: a insensibilidade do descaso. Instado a comentar a denúncia feita pela ONG Conectas e pela Comissão Arns no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas contra as "operações letais e a escalada da violência policial na Baixada Santista", Tarcísio de Freitas desdenhou: "Pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta que eu não tô nem aí."

A frase do governador tem parentesco próximo com um comentário feito por Bolsonaro em abril de 2020, durante a pandemia. Num instante em que a covid havia conduzido à sepultura 5.017 brasileiros, o então presidente da República também adicionou à indiferença negacionista a perversidade do descaso: "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre."

Em duas investidas, a Polícia Militar de São Paulo já passou nas armas 67 pessoas na Baixada Santista. Na Operação Escudo, produziu 28 cadáveres no ano passado. Na Operação Verão, deflagrada neste ano, adicionou 39 corpos ao monturo humano, até o último dia 29 de fevereiro.

Na semana passada, foi entregue ao Ministério Público de São Paulo relatório encabeçado pela Ouvidoria da Polícia e subscrito por outras entidades. O documento denuncia a elevada letalidade policial na Baixada Santista e enumera casos com indícios de abusos de autoridade, tortura, execuções sumárias, obstrução de Justiça, fraude processual e outras violações.

Alheio a tudo o que está na cara, Tarcísio reiterou nesta sexta-feira: "A gente está fazendo o que é correto, não tem bandido na polícia. E quando tem excesso, esse excesso vai ser punido exemplarmente, porque nós não vamos tolerar o desvio de conduta, o excesso, a indisciplina, tudo a gente vai investigar."

Por ora, não há senão os corpos e as denúncias de barbárie policial. Nenhum vestígio de reconhecimento do governo estadual a algum "excesso" ou "indisciplina". Investigação, nem pensar. Tarcísio soa como se concedesse um salvo-conduto à Polícia Militar: "Tem uma turma profissional que está dando o máximo, dando a vida para nos proteger [...]. Sinceramente, temos muita tranquilidade sobre o que está sendo feito."

Nos últimos dias, Tarcísio dedicou-se a encostar sua administração na agenda do bolsonarismo. Discursou na Avenida Paulista durante o ato em que Bolsonaro defendeu "anistia" para os condenados do 8 de janeiro, admitiu uma minuta golpista que negava e entoou o desejo de "passar uma borracha no passado" tisnado pela conspiração golpista.

Na última quinta-feira, Tarcísio enviou à Assembleia Legislativa o projeto de lei que cria o programa de escolas cívico-militares. Planeja implantar 100 estabelecimentos do gênero. Neles, cultivará a pedagogia do "civismo, brasilidade e disciplina". Decorridas apenas 24 horas, o governador jogou no ventilador o "tô nem aí" para o morticínio que marca a atuação da polícia comandada pelo capitão Guilherme Derrite, o bolsonarista que chefia a Secretaria de Segurança.

Há mais política eleitoral do que política pública na decisão de Tarcísio de ecoar no Palácio dos Bandeirantes os mesmos ruídos que Bolsonaro produzia no Palácio do Planalto. O cálculo político do governador desconsidera o "fator moderação". Falta ao afilhado político do capitão uma percepção qualquer sobre a conveniência de balancear a sua equação para 2026 com um cálculo do tipo custo-benefício.

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A polarização empurrou a maior parte do eleitorado para os dois extremos. Mas há um miolo da sociedade que não se identifica automaticamente com o lulismo nem com o bolsonarismo. Embora minoritário, esse contingente é grande o bastante para decidir uma eleição apertada. Exagerando na associação com Bolsonaro, Tarcísio distancia-se do pedaço independente do eleitorado.

Durante os quatro anos da sua Presidência, Bolsonaro também revelou-se incapaz de perceber que o tambor faz barulho, mas é vazio por dentro. Deu na eleição de Lula em 2022, por uma pequena margem, seguida da decretação da inelegibilidade do rival pelo Tribunal Superior Eleitoral.

Depois de descer ao verbete da enciclopédia como primeiro presidente da história a não obter a reeleição, Bolsonaro aguarda na fila do Supremo Tribunal pelas condenações criminais que podem elevar seu período de banimento das urnas para 30 anos, sem anistia.

No caso das operações policiais da Baixada Santista, o negacionismo das violações aos direitos humanos e o aval à matança policial produzem um efeito deletério. Atiçam a sensibilidade do naco do eleitorado que, despolarizado, horroriza-se com a constatação de que, a pretexto de responder à perversidade da bandidagem, São Paulo multiplica a barbárie, transformando a prática dos criminosos em política de estado.

Com sorte, Tarcísio perceberá com o passar do tempo que a brutalidade policial vai se convertendo numa espécie de cloroquina de um governador que se dizia técnico, mas, a exemplo do padrinho, revela-se um gestor sem comprovação científica. Se esse momento chegar, o afilhado de Bolsonaro talvez descubra que só há um remédio infalível para cada culpa: reconhecê-la enquanto há tempo.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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