Lula presenteia oposição com saudosismo antiprivatização
Lula precisa harmonizar seus lábios com os humores da sociedade. Na última quinta-feira, a boca do jacaré do Ipec se manteve aberta, mostrando que 52% dos entrevistados não confiam em Lula, contra 45% que confiam. No dia seguinte, Lula também abriu a boca para reiterar sua aversão às privatizações.
Em cerimônia de inauguração do Complexo de Energias Boaventura, antigo Comperj, Lula indagou: "A venda da BR Distribuidora melhorou em que para a sociedade? Barateou o combustível? Tiraram um pedaço da Petrobras! A Vale está melhor agora por ser privatizada ou era melhor quando era do Estado? E a Eletrobras?"
O discuso é ofensivo e inservível. Ofende porque ignora perversões que marcaram gestões anteriores de Lula. A falta de serventia decorre do fato de o governo não dispõe de força para reestatizar as companhias. Na prática, Lula atira contra o próprio pé. Presenteia a oposição, parte dela de viés paleolítico, em plena temporada eleitoral.
Além do velho Comperj, Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, Lula direciona investimentos da Petrobras para a Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco. Travados em 2015 pela corrupção, os dois empreendimentos resultaram em prejuízos de US$ 27 bilhões, segundo o Tribunal de Contas da União.
Devolvido ao Planalto por uma frente ampla que incluiu a defesa da democracia, Lula assistiu em maio do ano passado à condenação de Fernando Collor —oito anos e dez meses de cadeia— por desviar cerca de R$ 20 milhões dos cofres da BR Distribuidora. Coisa iniciada em 2010, sob Lula, e consumada até 2014, sob Dilma.
É uma pena que Lula não cultive o hábito da leitura. Poderia descer do Mundo da Lua por um instante para degustar um conto de Ernest Hemingway. Chama-se "As Neves do Kilimanjaro", montanha coberta de neve, a 6 mil metros de altitude.
"O seu pico ocidental chama-se 'Ngàge Ngài', a Casa de Deus", escreveu Hemingway. "Junto a este pico encontra-se a carcaça de um leopardo. Ninguém ainda conseguiu explicar o que procurava o leopardo naquela altitude."
O leopardo do conto serve de metáfora para muita coisa. Pode simbolizar a busca romântica pelo inalcançável. Ou o espírito de aventura levado à extrema inconsequência. Mal comparando, Lula está em posição análoga à do leopardo, pois a Presidência é o cume da política.
Num instante em que o Brasil está em chamas, Lula deveria fazer uma pergunta a si mesmo: Por que cheguei pela terceira vez ao ponto mais alto do Poder Executivo? Do contrário, no futuro, quando os arqueólogos forem escavar esse pedaço da história, encontrarão sob as cinzas de um Brasil remoto, a carcaça de um presidente tão inexplicável quanto o leopardo de Hemingway.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.