Josias de Souza

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Opinião

Se demorar, autocrítica de Lula pode chegar junto com autopsia

Sob o impacto dos resultados do primeiro turno das eleições municipais, Lula disse que é preciso "rediscutir o papel do PT". Deveria iniciar a rediscussão concedendo uma audiência ao seu espelho.

O encontro com o espelho pode ser uma experiência cruel. A imagem refletida é de uma franqueza inescapável. Revela, sem atenuantes, todas as ofensas do tempo. Rugas, cabelos brancos, calva e flacidez política.

Lula já havia entoado a mesma cantilena da renovação partidária, com outras palavras, numa conferência eleitoral do PT, em dezembro de 2023. O problema é que o discurso pronunciado na ocasião tinha mais perguntas que respostas.

Falando para uma plateia que incluía a fina flor do petismo —de Gleisi a Haddad— Lula indagou: "Será que estamos falando aquilo que o povo quer ouvir de nós? Ou será que temos que aprender com o povo como é que fala com eles?"

Nesse encontro de dez meses atrás, o xamã do PT fez uma aposta: "Eu sinceramente acho que essa eleição que vai acontecer, vai ser outra vez Lula x Bolsonaro disputando essas eleições nos municípios." Enganou-se.

A polarização foi um fator residual no primeiro turno de 2024. Na cidade de São Paulo, onde Lula previu que a disputa seria entre ele e a "figura", o fenômeno Pablo Marçal mostrou que há males que vêm para pior.

Para resolver o "problema" da desconexão do PT com o pedaço antipetista da sociedade, disse Lula à cúpula do partido, seria necessário retomar o "trabalho de base". O apoio eleitoral deveria ser conquistado "na rua".

Lula se absteve de seguir o próprio conselho. Frustou candidatos petistas ao redor do país com sua ausência nos atos de campanha. Foi como se intuísse que já não é um cabo eleitoral tão portentoso quanto foi no passado.

Desde que o PT foi fundado, em 1980, o mundo do trabalho foi virado do avesso, o imposto sindical acabou, a militância petista envelheceu, e a direita -oscilando entre marçais e Tarcísio de Freitas, ensaia o pós-bolsonarismo. Quase tudo mudou, exceto Lula.

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Com medo de Marçal, a "figura" fugiu de São Paulo. Alegando dificuldades de agenda, Lula também agiu com parcimônia na capital paulista. Ali, o favoritismo de Ricardo Nunes faz de Guilherme Boulos, testa de ferro pinçado por Lula no PSOL, uma espécia de personificação das debilidades do PT.

Mal comparando, Boulos revive a saga de Lula, que aprendeu com três derrotas que o êxito eleitoral passa pela suavização do passado radical. Marçal mostrou que a "rua" que faz a diferença nos dias atuais pode ser virtual.

O grotesco extraiu sua força das redes sociais, por cujas vielas Lula e o PT ainda não aprenderam a trafegar. Como um punguista ideológico, Marçal roubou o bolsonarismo de Bolsonaro e fabricou um discurso alternativo ao do PT.

Contra o lero-lero sindalista da década de 80 do século passado, Marçal vendeu ilusões à legião de empreendedores que ralam para encher a geladeira às magens da CLT. Sem a intermediação de malafaias, capturou corações cristãos com o seu evangelho da prosperidade.

O impensável foi barrado nas urnas do primeiro turno por um triz. Mas forçou Boulos a marçalizar, por assim dizer, a sua retórica. O preferido de Lula viu-se compelido a mimetizar o discurso empreendedor daquele que, na antevéspera do pleito, divulgou a laudo médico falso da cocaína.

Na conferência petista de dezembro, Lula lamentou que brasileiros com renda acima de dois salários mínimos fogem do PT. Disse que um "metalúrgico que ganha R$ 8 mil" já não quer votar no partido. As urnas de São Paulo esboçaram um quadro ainda pior.

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Em 2022, Lula prevaleceu sobre Bolsonaro em São Paulo por 53,54% a 46,46% dos votos válidos. Boulos chegou ao final do primeiro turno com apoio de cerca de metade dos eleitores lulistas. No Datafolha da última quinta-feira, o percentual subiu para 63%.

Entretanto, 31% dos antigos eleitores de Lula disseram preferir Nunes. Entre os lulistas que optam pela reeleição do prefeito, 27% declaram que jamais votariam em Boulos, cuja rejeição, no eleitorado total, bateu em 58%.

Com uma vantagem de 22 pontos percentuais (55% a 33%), Nunes prevalece sobre Boulos em todos os extratos sociais, inclusive entre os moradores da periferia.

Programas como o Bolsa Família tornaram-se dados da realidade. Aos olhos do eleitor, a autoria vai ficando em segundo plano. Na comparação com as obras emergenciais da prefeitura, os CEUs de Marta Suplicy viraram memória esmaecida de uma conquista obtida há duas décadas.

Na última quarta-feira, Lula declarou que seus ministros estão proibidos de apresentar "ideia nova". Repetiu que é hora de "colher o que plantamos." Apenas 48 horas depois, o Datafolha informou que a aprovação da gestão Lula (36%) está separada da reprovação (32%) pela margem de erro.

No mesmo período, em outubro de 2020, em plena pandemia, o governo Bolsonaro recebeu notas similares: aprovação de 37%, reprovação de 34%. A similaridade demonstra que Lula tem dificuldades para adquirir o tamanho que imagina ter.

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Nesse contexto, a conversa de Lula com o espelho tornou-se um imperativo. Se o diálogo for franco, a imagem refletida dirá que o responsável pela dissintonia do PT com o eleitorado chama-se Lula. Impossível terceirizar a tarefa de "rediscutir o papel do PT". Se demorar, autocrítica pode chegar junto com a autopsia.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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