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Juliana Dal Piva

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Jornalista brasileira: Se os russos tomarem Kiev, não sei se poderemos sair

Anelise Borges, jornalista brasileira na Ucrânia - Divulgação
Anelise Borges, jornalista brasileira na Ucrânia Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

20/03/2022 07h00

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A jornalista brasileira Anelise Borges é correspondente internacional e trabalha para o canal Euronews. Já trabalhou nos conflitos na Síria e no Afeganistão e está cobrindo a guerra na Ucrânia. Ela é a única mulher entre os jornalistas brasileiros trabalhando em território ucraniano e está baseada em Kiev, capital daquele país. Na entrevista à coluna, Anelise falou sobre o cotidiano de trabalho, os primeiros relatos sobre a possibilidade de crimes sexuais na guerra e ainda a incerteza sobre o que vai ocorrer se os russos dominarem a capital. "Se os russos conseguirem dominar a capital, não há condições de trabalhar aqui. Acho que eles não vão deixar a gente ficar. Na verdade, não sei nem se eles deixariam a gente sair", conta.

Quando você chegou na Ucrânia? Já conhecia o país?

Voltei há 15 dias. Peguei ônibus de Cracóvia, na Polônia, e fui para Lviv (Ucrânia) e depois vim para Kiev, a capital. Mas eu já tinha vindo para cá no início do ano, em janeiro. Eu fiz toda uma rota entre Kiev e a região do Donbass, até Mariupol e voltei por Dnipro. Então, eu já conhecia a Ucrânia. Já tinha conversado bastante com os residentes por aqui e pelo leste do país sobre a possibilidade de uma guerra. Na época, em janeiro, lembro que a reação das pessoas na maior parte do tempo era: "a guerra, a gente já conhece" e "essa guerra já está acontecendo tem oito anos". Diziam isso por causa do conflito no leste, entre o exército ucraniano e os rebeldes separatistas, que tinham o apoio da Rússia.

Você está trabalhando para um veículo europeu, mas é a única jornalista mulher brasileira cobrindo esse conflito no momento. Como tem sido essa experiência? Como é o ambiente machista que também é próprio da guerra?

Trabalho para um canal europeu e acho que sou a única mulher brasileira, mas tem alguns colegas brasileiros homens aqui que são excelentes. É um ambiente masculino no sentido de que a violência normalmente é muito associada ao masculino. Só que eu vejo, no geral, muitas mulheres envolvidas com a guerra. Há mulheres fotógrafas, inclusive, se aproximando bastante do front da guerra e indo atrás de imagens impactantes dos bombardeios. Nos últimos dias, a gente teve muitas áreas residenciais que foram atingidas por pedaços de mísseis aqui. Não sinto um machismo no ambiente que eu estou. No ambiente de trabalho, entre os colegas jornalistas. Existe bastante solidariedade entre as pessoas. Tentamos nos ajudar. Muitos se impressionam porque eu viajo sozinha, né? Eu tenho aqui uma equipe super legal. Tenho um motorista e uma produtora e eles são excelentes. São as minhas orelhas e os meus olhos aqui porque eu não entendo nem ucraniano nem russo. Eles eram músicos. Ele era baterista e ela cantora. Os dois tinham uma banda antes de tudo começar e agora eles estão ajudando da maneira que eles podem e por enquanto eles estão ajudando jornalistas.

Ser mulher atrapalha seu trabalho?

Quando eu falo que eu vim sozinha, viajei de Lviv até Kiev em um trem sozinha de noite, as pessoas dizem: "você é louca". Mas, normalmente, as pessoas me oferecem ajuda. Deixam números de celulares e oferecem ajuda se precisar sair de Kiev. Então, por enquanto tem sido inclusive bem positivo ser mulher. Sempre sinto que a gente também passa um pouco mais de segurança para as pessoas, sabe? Quando a gente vai entrar numa casa, de alguém que sofreu violação dos seus direitos, perdeu um parente ou a casa, naturalmente, acho que a gente tem um pouco mais de sensibilidade e, às vezes, as pessoas se abrem um pouco mais. Para ser sincera, acho que ser mulher ajuda em várias situações.

As violações sexuais são crimes muito comuns, infelizmente, em zonas de guerra. Você tem acompanhado relatos sobre isso na Ucrânia também?

Escutei sim alguns relatos de que existem vítimas desses crimes, mas não foram relatos diretos. Encontrei algumas pessoas que estavam fugindo de certas cidades que agora estão ocupadas pelos russos, principalmente aqui perto de Kiev. Inclusive, de gente de uma cidade chamada Bucha. Os relatos foram de uma equipe de um asilo psiquiátrico, nessa região, que fugiu e que eu encontrei aqui no hospital psiquiátrico de Kiev. As enfermeiras e os médicos fugiram junto com seus pacientes e foram evacuados da cidade. Eles estavam muito abalados porque disseram que as pessoas que ficaram para trás, naquela cidade, estão sofrendo muito. Elas contaram sobre um grupo de mulheres que tinham sido aprisionado pelos russos e que, aparentemente, estavam sofrendo violência sexual e que muitos homens estavam sendo executados. Mas é difícil verificar essas informações. Agora, a gente não consegue ter acesso ao lado russo e os colegas que tentaram se aproximar do lado russo foram atingidos por balas e um, inclusive, que eu sei que estava tentando confirmar essas denúncias, faleceu. Então, é muito difícil confirmar esses relatos.

Como sente que a questão de gênero e sexualidade aparece no conflito?

São questões de antes do conflito começar. Para te dar uma ideia, entrevistei um rapaz que é homossexual e é parte do exército ucraniano. Ele criou uma associação quando voltou do front de (Donbass) em 2016 para ajudar os veteranos da guerra que eram homossexuais e que tinham dificuldade de expressar a sua sexualidade e também estavam lidando com traumas da da guerra. Esse rapaz me deu uma entrevista sobre isso. Aquilo causou uma reação tão maior do que a gente esperava do lado russo. Virou uma propaganda para os russos atacarem os ucranianos. "Ah então é tudo bicha do lado da Ucrânia. Olha aí os vizinhos que vão querer lutar contra o nosso exército". Assim, um nível baixíssimo e esse rapaz foi extremamente atacado nas redes sociais e a gente nem estava falando particularmente dessa questão da homossexualidade no exército. A gente estava falando sobre o trauma e a dificuldade das pessoas de saírem de uma zona de conflito e tentarem se readaptar em uma vida normal. A questão de gênero e sexualidade é utilizada principalmente do lado russo. Mas ela é muito mais ofensiva aos homossexuais. Tudo para os russos é munição para a guerra. Inclusive, a opção sexual das pessoas.

Alguns jornalistas morreram essa semana durante a cobertura da guerra. Como você lida com o medo?

O jornalista americano morreu no dia em que eu cheguei em Kiev. Ele estava tentando entrar numa área que estava controlada pelos russos e o carro estava bem marcado com o adesivo "Press", imprensa, em inglês. Estava escrito por todos os lados e ele morreu com uma bala no pescoço. Ele tinha capacete, colete, mas isso não o salvou. É muito difícil porque a gente fica obviamente imaginando que podia ser um de nós. E ninguém quer morrer. Estamos aqui porque achamos importante fazer esse trabalho, algo contra os nossos próprios instintos.

Isso mexe muito com a gente porque nos encontramos o tempo inteiro e a gente se cruza em alguns dos hotéis que estão recebendo jornalistas e no único bar que ainda está aberto e serve almoço, e chama Buenavista bar. Inclusive, é até engraçado que lá tem uma camisa do Brasil. Claro que temos medo, bastante medo. Cada vez que um sistema de defesa da Ucrânia aciona as sirenes e a gente vai procurar abrigo, e, às vezes, não tem e vem aquele som grave do foguete passando perto, é assustador. Não tem outra palavra. Estamos tentando medir o quanto a gente ainda está podendo correr o risco, quanto ainda faz sentido correr esse risco e quando que a gente precisa sair daqui. Eu te confesso que eu estou tentando ficar o máximo possível porque tenho esperança de que a ideia de que a gente esteja aqui talvez sirva também para, não sei, proteger um pouco dos bombardeios mais dramáticos. Pode ser um pouco ilusão, mas a gente espera que, enquanto a imprensa estiver aqui, as medidas mais violentas não sejam tomadas aqui. Mariupol era uma graça e aquela cidade agora está devastada. Mais de 80% dos prédios foram danificados e não tem como reparar. Vão ter que construir tudo de novo. Se a presença dos jornalistas aqui em Kiev puder evitar de acontecer aqui a mesma coisa, acho que é um pouco também da nossa missão, sabe?

Como é a liberdade de trabalho e acesso à informação?

A liberdade de trabalho a gente tem muito. Até demais, inclusive. Normalmente, em guerra, você tem que ir pro front com algum exército. Você tem que pedir pra ir. Aqui ninguém pede nada pra ninguém. A gente entra num carro e vai sabe? Então, é muito mais arriscado também porque a gente está por todos os lados da cidade e as autoridades aqui estão fazendo o melhor que podem no sentido de defender a cidade. Muitas das pessoas que estão defendendo Kiev hoje em dia são membros da sociedade que não tem experiência militar e que treinaram um pouquinho, alguns com umas arminhas de madeira, antes dessa guerra começar. E, agora, são eles que ficaram aqui e estão tentando defender a cidade. Então eles estão ocupados demais para cuidar de jornalistas. A gente troca bastante informação com colegas, soldados e o escritório da presidência, que é muito ativo aqui. Mas, alguns desses fronts, agora ficaram bem inacessíveis depois das mortes de jornalistas. Existem muitos pontos de checagem pela cidade e é com isso que eles controlam o nosso acesso em alguns lugares, mas quase tudo é acessível dentro da cidade e até essas áreas que agora estão sendo bombardeadas na periferia de Kiev.

O que é o mais difícil?

É muita tristeza assim, sabe? Muita tristeza o tempo todo. Isso afeta a gente. Ver uma velhinha que não foi embora. O que ela vai fazer em outro lugar do mundo, sabe? Tipo, ela morou a vida toda aqui. Ela tem um apartamentinho dela aqui. Não vai sair. E quando ela nos conta que estava preparando uma sopa e escutou um barulho forte e depois o apartamento dela pegou fogo ? você encontra ela na rua esperando para tentar entrar para ver o que dá pra salvar. Aquela senhora, de pijama, roupão, pantufa na rua com dois graus negativos. Daí você pensa na sua avó, né? Fico lutando contra as lágrimas assim diariamente, sabe? É muita destruição e muita destruição de vidas. É difícil você tentar contar a história de uma guerra e tentar achar sentido no que não faz sentido, sabe? Então você passa o dia inteiro filmando entrevistas com pessoas que acabaram de perder tudo que elas tinham e, no fim, dá vontade de acordar do pesadelo. Eu imagino que seja assim pra eles também e no outro dia tem que levantar e ir de novo porque essas pessoas continuam sofrendo essas agressões e a história continua acontecendo. Tento guardar um pouquinho de distância e sair de novo.

Com o avanço da guerra, existe a possibilidade de os russos tomarem Kiev. Como fica a situação de trabalho de vocês?

Se os russos conseguirem dominar a capital, não há condições de trabalhar aqui. Acho que eles não vão deixar a gente ficar. Na verdade, não sei nem se eles deixariam a gente sair. Se eles tomam a capital de uma maneira surpreendente, muito rápido, não sei o que acontece com a gente. A gente ficou sabendo de pelo menos uma jornalista ucraniana que foi presa pelos russos e não sabemos onde ela está. Não foi em Kiev. Foi em um vilarejo para o leste daqui, uma cidade pequena. Ouvimos que as tropas russas estão um pouco estagnadas em direção à Kiev. Só que a propaganda acontece dos dois lados. O governo ucraniano também está tentando colocar o seu lado da narrativa. Eles demoraram bastante, por exemplo, para divulgar o número de soldados mortos. Agora eles dizem que foram só 1,3 mil mortos, mas acho pouco para o nível de destruição que estamos vendo. No entanto, é a informação oficial. É difícil saber o que vai acontecer nos próximos dias. A gente vai tentar ficar aqui. Até quando, não sei dizer.