Chuvas em SP: A região central da metrópole teve um dia de periferia
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São Paulo foi atingida por uma forte chuva que caiu entre ontem e hoje (10), principalmente nas regiões Oeste e Sul. Transmitidas pelos veículos de comunicação e pelas redes sociais, as imagens de avenidas que voltaram a ser várzeas de rios e de escolas, empresas e casas invadidas por um caldo fedorento de água marrom chocaram uma parcela da cidade que definiu a situação como o fim do mundo.
Outra parte, contudo, que chama "fim do mundo" de cotidiano, não tinha muito tempo para ficar chocada porque precisava salvar o que restou de seus pertences após a água invadir seus lares e negócios pela enésima vez. Sim, a região central (quase) teve seu dia de Jardim Pantanal, de Vila Itaim, bairros de várzea no extremo Leste da Zona Leste, que passam dias alagados quando chove forte.
Quando famílias perdem tudo (até a vida) nesses locais, o poder público culpa a geografia ou alega a impossibilidade de prever desastres. Não raro, o resto da cidade não compreende o drama ou pouco se importa com ele.
Na verdade, o que acontecia nesses locais eram avisos - ignorados ao longo do tempo porque envolvia a parte mais pobre da população. Agora, como o caos fugiu da periferia e veio ao centro, talvez o restante de nós abra os olhos.
Com exceção dos fanáticos que enxergam nisso sinais da segunda vinda do messias, apenas os mais míopes não percebem que a cidade e o planeta estão dando o troco. Não estou falando apenas do aquecimento global e das já irreversíveis mudanças climáticas, mas também dos crimes ambientais que fomos acumulando debaixo do tapete da capital paulista. E que, agora, tornaram-se uma montanha pronta a nos soterrar.
Ocupação irregular, planejamento, plano diretor, reforma urbana, permeabilidade do solo são expressões ouvidas apenas no tempo das chuvas. Na seca, elas evaporam do léxico não só dos mandatários, mas também de parte da população que continua construindo, desmatando e poluindo.
Realizamos pesados investimentos na tática do "expulsar para resolver", a velha e boa limpeza social, já adotada em larga escala em regiões com ações urbanas como os bairros da Luz e Barra Funda. Para onde vai esse povo "saído" de lá? Beira de represas, morros, ou várzeas - como sempre foi - afogando-se em merda em locais distantes do Centro e sem estrutura.
Agora, a merda bate à nossa parte, na região central. E vai bater de novo, e de novo, e de novo.
Para tentar dar uma chacoalhada nos leitores, escrevi há dez anos, neste espaço, que chegaria o dia em que viria uma grande chuva, escura, no meio da tarde em São Paulo. Disse que veríamos, em pouco tempo, tratar-se de um pé d'água maior que as tempestades que atingem normalmente o planalto de Piratininga. E começaria a cair, toda ela, em cima dos bairros nobres. A água subiria com o lixo entupindo as bocas de lobo e iria inundar mansões, encharcar tapetes caros, afogar alguns carros importados.
Não há mérito premonitório no óbvio.
Também disse que, se isso acontecesse, talvez fossem implantadas ações para amenizar o sofrimento desse povaréu, que foi empurrado para as várzeas, morros e vales de rios pela especulação imobiliária e a pobreza. Pois, dividindo a mesma situação, talvez enxergássemos no outro não apenas um personagem da matéria da TV e sim um igual e juntos buscassem alguma solução.
Será que viver uma parte (ainda que pequena) dessa tragédia fará com que a porção mais rica da cidade empurre seus políticos para soluções urbanas e planetárias duradouras? Ou a insistência em ser tratado como lixo levará à porção pobre finalmente a se mobilizar e não aceitar um Estado que age seletivamente diante de catástrofes?
Torço que sim, apesar de achar que não.