Bolsonaro quer convencer que vida de idoso é pedágio a pagar ao coronavírus
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"Infelizmente, algumas mortes terão, paciência, acontece, e vamos tocar o barco." A declaração de Jair Bolsonaro ao jornalista José Luiz Datena, da TV Bandeirantes, nesta sexta (28), não é nova. Mas repetição mostra esforço em passar uma mensagem cínica e sociopata.
"Vão morrer alguns [idosos e pessoas mais vulneráveis] pelo vírus? Sim, vão morrer. Se tiver um com deficiência, pegou no contrapé, eu lamento", disse ao apresentador Ratinho, no último dia 20, outro exemplo.
Bolsonaro afirma que quer separar idosos do resto da sociedade para protege-los - alucinação que ele chama de "isolamento vertical". Como isso é impossível, se a população atender a seu chamado e voltar à vida normal apesar da Covid-19, vai endossar a mentira que idosos morrem de qualquer jeito e pelos mais diferentes motivos.
Ignora também milhões de jovens e adultos com doenças cardíacas, hipertensão, diabetes, baixa imunidade ou em tratamento de câncer, que estão no mesmo balaio de risco.
Não se pode forçar alguém a sentir empatia pelo seu semelhante. Principalmente quando ela não reconhece outro ser humano como seu semelhante. Se Bolsonaro não aprendeu isso nos últimos 65 anos, não aprenderá agora.
Após ter menosprezado o impacto do coronavírus no pronunciamento que fez à nação, na última terça (24), a ideia de que a economia não pode parar por causa da morte de algumas milhares de pessoas tem sido compartilhada à exaustão por bolsonaristas.
Há uma camada da população que só acredita em algo se essa coisa bater à sua porta e for palpável. Isso explica, em parte, porque políticos que prometem asfalto são heróis e os que garantem educação, não raro, são chamados de inúteis neste país.
Para essa camada, um vírus que seu grupo de WhatsApp jurou que era uma conspiração sino-comunista contra o Ocidente não é forte o suficiente para lhe atingir. E o que são alguns milhares de idosos diante de uma recessão econômica?
E vão para a rua fazer carreatas irresponsáveis, como no Balneário Camburiú (SC). Ou realizam patéticos protesto na porta de um provisório hospital montado no Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Ou ameaçam seus porteiros e empregadas domésticas a voltarem ao trabalho a todo o custo.
Vale lembrar que o primeiro óbito por coronavírus em São Paulo foi de um porteiro aposentado. E, no Rio, de uma empregada doméstica que, provavelmente, contraiu de seus patrões que haviam viajado ao exterior.
Essa camada da população talvez se dê conta do significado de suas ações quando for tarde demais, ao verem pais e avós agonizando no hospital em decorrência de Covid-19, sem poderem se despedir deles devido à proibição de visitas e sem poder velá-los decentemente, uma vez que o enterro das vítimas têm sido rápido por segurança.
Não desejo mal aos negacionistas e suas famílias, longe disso. Mas quando o distante se torna próximo e a tragédia ganha rosto, história e dor é que parte deles perceberá o tamanho de sua ignorância. Parte, claro, porque o restante vai continuar achando que era hora do ente querido mesmo, que Deus quis assim, que a culpa é da China ou do PT.
Trabalhando com o maniqueísmo raso que fascina parte de seus seguidores, Bolsonaro antagoniza, de um lado, a tomada de medidas de isolamento social para retardar a infecção pelo coronavírus e, do outro, a manutenção de empregos e negócios. Isso não existe, é possível proteger pessoas e a economia. Bolsonaro omite que foi a sua má fé e a inépcia de seu governo que fizeram com que medidas para proteção de empregos, garantia de renda mínima aos informais e desempregados e repasse de recursos a pequenos e microempresários começassem a ser pensados tardiamente e de forma insuficiente.
O problema é que o vírus não faz teste de sanidade mental antes de invadir organismos e mata a todos indiscriminadamente, dos negacionistas aos que querem cuidar de si e dos outros. Ou seja, a irresponsabilidade de alguns vai cobrar a vida de muitos tantos.