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Leonardo Sakamoto

Samu: "Estamos deixando de cuidar dos vivos para dar declaração de óbito"

Agentes de saúde transferem paciente do novo coronavírus em ambulância - BRUNO KELLY
Agentes de saúde transferem paciente do novo coronavírus em ambulância Imagem: BRUNO KELLY

Colunista do UOL

22/04/2020 17h58

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Resumo da notícia

  • Socorristas do Samu reclamam que estão deixando de atender urgências de pacientes vivos para dar declaração de óbitos por conta da Covid-19
  • Por conta da pandemia, decisão do governo paulista levou profissionais que atuam no suporte avançado de vida a se dedicarem também a isso.
  • Inicialmente, duas das dez equipes foram deslocadas para isso. Agora, o número pode chegar a cinco equipes para declarar óbito.
  • "A cada saída nossa para realizar uma declaração de óbito, a viatura fica indisponível para o restante dos moradores por quase três horas."

"Estamos deixando de cuidar dos vivos para declarar óbito por causa da Covid-19." O desabafo é de um dos socorristas do Samu, em São Paulo, ouvidos pela coluna. O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência ganhou a atribuição de dar declarações de óbitos para casos confirmados e suspeitos de Covid-19, além de mortes naturais, ou seja, que não envolvam violência. Com isso, recursos humanos e ambulâncias deixaram de atender urgências de pacientes vivos.

Por conta da pandemia de coronavírus, uma decisão do governo paulista levou médicos que atuam no suporte avançado de vida a se dedicarem a essa tarefa, sobrecarregando as equipes.

"Já fiquei 24 horas fazendo apenas declaração de óbito, parando 15 minutos para comer e ir ao banheiro", desabafa o mesmo socorrista.

Inicialmente, isso significou o destacamento de duas das dez equipes na capital (quando a grade está completa) para declarar óbitos. Mas o número de mortes diárias começou a subir: de uma média de 15, dependendo do mês, para 40 - até agora. "Começou a acontecer fila de morto em São Paulo", aponta um dos socorristas, fato que está ligado à pandemia.

Com isso, o número de equipes para a tarefa de atestar os óbitos estão passando de duas para quatro ou cinco.

A situação piora nos dias em que o número de equipes disponíveis cai para três, devido às limitações impostas pela infecção desses profissionais pela própria doença - vale lembrar, por exemplo, que o médico socorrista Paulo Fernando Palazzo morreu, no último dia 5, por Covid-19. Nesses casos, a conta só fecha por conta de malabarismos para atender vivos e mortos.

Hospital de campanha montado no Estádio do Pacaembu, em São Paulo - GOVESP/Fotos Públicas - GOVESP/Fotos Públicas
Hospital de campanha montado no Estádio do Pacaembu, em São Paulo
Imagem: GOVESP/Fotos Públicas

"A cada saída nossa para realizar uma declaração de óbito, a viatura fica indisponível para o restante dos moradores por quase três horas", afirma um dos médicos.

"A equipe tem que se paramentar porque a morte pode ter acontecido por Covid-19. Depois, examinar e colher testes. Preparar o corpo, ensacando-o duas vezes. Preencher um formulário, chamado de autópsia verbal. As amostras são condicionadas e destinadas ao laboratório. E, claro, fazer a declaração de óbito", conta. O corpo não é retirado pelo Samu, mas pelo serviço funerário.

"Tem um momento em que deixamos a família fazer uma oração. Tudo isso leva tempo. Em casos suspeitos de Covid-19, será a última vez que a pessoa verá seu ente querido. Após colocado nos sacos, ele é disposto no caixão e lacrado", afirma outro socorrista.

Profissionais do Samu reclamam que o poder público, além de tudo, perde dinheiro ao deslocar equipes especializadas em salvar vidas para uma atividade que poderia estar sendo realizada por outros médicos.

"A situação é de necessidades ilimitadas para recursos escassos - somos o recurso escasso neste momento. É uma noção de economia, o que vou priorizar. Do ponto de vista médico, deve-se priorizar quem está vivo. Mas daí tem que ver a intenção política de cada gestor", desabafa um socorrista.

O UOL questionou, por escrito e por telefone, se o governo pretende manter o decreto do governador João Doria e a resolução da Secretaria Estadual de Saúde que fez com que o Samu passasse a fazer declarações de óbito em meio à pandemia, uma vez que isso significou a diminuição dos pacientes vivos. Assim que obtiver uma resposta, irá inclui-la neste texto.

Profissionais do Samu prestam homenagem a socorrista morto por Covid-19 - Divulgação - Divulgação
Profissionais do Samu prestam homenagem a socorrista morto por Covid-19
Imagem: Divulgação

Poucas ambulâncias

O Serviço de Verificação de Óbitos seria o responsável por fazer esse trabalho, mas a competência foi deslocada sob a justificativa de possibilidade de contaminação, lembrando que o vírus continua ativo por um tempo após a morte do paciente. O argumento foi visto com estranheza por médicos do Samu, uma vez que a decisão desfalcou o atendimento de pacientes e criou problemas para a saúde dos socorristas.

O UOL questionou a Secretaria Estadual de Saúde se pretende envolver o SOV na declaração de óbitos em residência. Também aguarda uma resposta.

A Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo também não está satisfeita com a situação, pois acredita que isso desvirtua a natureza da atividade, reduzindo a capacidade de atendimento.

Discute-se a contratação emergencial de médicos para o serviço, mas os socorristas ouvidos acreditam que isso não vai resolver. "Se colocar mais dez, eles vão trabalhar o tempo todo e não vão dar contra. Nem começou ainda o pico de mortes no município. O ideal é que a atividade não fique com o Samu", afirma um deles, "mas use veículos próprios, que não sejam ambulâncias".

Vale lembrar que pacientes que estão em Unidades Básicas de Saúde também precisam do Samu para serem transferidos aos hospitais de campanha do Estádio do Pacaembu e do Centro de Convenções do Anhembi. E, caso seu quadro se agrave e precisem ser deslocados para hospitais com UTI, nova transferência em ambulância com médico.

Cova coletiva aberta em cemitério de Manaus - Sandro Pereira/Estadão Conteúdo - Sandro Pereira/Estadão Conteúdo
21.abr.2020 - Cova coletiva aberta em cemitério de Manaus: prefeitura diz que medida é necessária para dar conta do grande número de sepultamentos causados por casos confirmados ou suspeitos de covid-19
Imagem: Sandro Pereira/Estadão Conteúdo

12 horas

Adel Attoy, de 100 anos, passou mal e veio a falecer após voltar de uma hospitalização. A causa da morte não foi Covid-19, mas sua família acabou sofrendo as consequências da quantidade reduzida de equipes médicas do Samu em São Paulo e das restrições para verificação de óbitos.

Sua sobrinha, Solange Maria Massaini, relata que a primeira ambulância do serviço chegou quando a tia já havia falecido, mas como não era uma das que contavam com médico, foi chamada uma segunda viatura. Por ter plano de saúde, foi aconselhado que acionasse a empresa - que, segundo ela, se negou a ir atestar o óbito. Novamente, o Samu foi chamado, mas como havia uma longa fila de atendimentos para declaração de óbito, o médico só chegou no final da noite.

No total, foram 12 horas de espera, com o corpo de Adel em casa, para conseguir o documento que permitiu chamar o serviço funerário.

"Fico revoltada. A reclamação não é com o Samu, pois não é justo o que fazem com esse pessoal que presta um serviço importante. Mas com o governo, que é um péssimo gestor. É uma fake news do governo do Estado quando diz que tem ambulâncias para atender a população", afirmou Massaini - que também prometeu processar o plano de saúde por negar atendimento, apesar de informar que o serviço estaria na cobertura.

Desinformação

Os socorristas têm sentido um fenômeno nas visitas às residências de mortos por Covid-19: muitos dos casos não chegaram a procurar o pronto-socorro.

Ouviram que deveriam procurar um hospital apenas em casos graves, uma vez que esses locais apresentam risco de contaminação. Veio uma piora rápida do quadro e acabaram por falecer.

"Tem gente com pânico de ir ao hospital, com medo. Daí, estão morrendo de Covid-19 em casa sem procurar ajuda", afirma um socorrista.