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Leonardo Sakamoto

Trump cita Brasil como mau exemplo para covid e toma distância de Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro cumprimenta apoiadores diante da bandeira dos Estados Unidos - Andre Borges/NurPhoto via Getty Images
O presidente Jair Bolsonaro cumprimenta apoiadores diante da bandeira dos Estados Unidos Imagem: Andre Borges/NurPhoto via Getty Images

Colunista do UOL

05/06/2020 16h05

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Poucas coisas doem tanto quanto amor não correspondido, seja ele afetivo ou fraternal. Nem imagino o que deve estar passando pela cabeça e o coração do presidente da República após a declaração de Donald Trump, nesta sexta (5), quando ele usou o Brasil como referência negativa sobre o combate à covid-19.

Jair Bolsonaro estabeleceu com o mandatário norte-americano mais do que uma parceria. É uma verdadeira relação de adoração - que, pelo que temos visto, não é recíproca. No que pese ambos acreditarem no America First como política externa.

"Se você olhar para o Brasil, eles estão passando por um momento muito difícil. A propósito, eles estão seguindo o exemplo da Suécia. A Suécia está passando por um momento terrível. Se tivéssemos feito isso, teríamos perdido 1 milhão, 1,5 milhão, talvez até 2,5 milhões ou mais de vidas", disse em coletiva nos jardins da Casa Branca.

Jair Bolsonaro tem citado a Suécia em seus discursos como exemplo a ser seguido por não ter fechado sua economia para combater o coronavírus. Porém, a realidade vem mostrando o contrário: o número de mortes nesse país é proporcionalmente maior que nos vizinhos escandinavos e ele também enfrenta recessão. Nesta quarta (3), o epidemiologista responsável pela suave estratégia sueca, Anders Tegnell, em entrevista a uma rádio, admitiu que eles erraram.

Ou seja, nem a Suécia concorda com Bolsonaro sobre a Suécia.

Trump está sendo pragmático e objetivo. A poucos meses de sua tentativa de reeleição, quer mostrar que sua ação foi responsável por salvar vidas e empregos.

Por mais que não faça críticas diretas a Bolsonaro, tudo o que ele não precisa é estar colado à imagem de um político apontado pela imprensa norte-americana, seja ela progressista ou conservadora, não como um líder em meio à pandemia, mas como um dos mais preocupantes vetores do coronavírus. Alguém que tratou a doença como "gripezinha", "resfriadinho", "fantasia" e "histeria".

E que pode até contaminar cidadãos norte-americanos com sua irresponsabilidade. Por conta da alta de casos por aqui, Trump bloqueou a entrada de pessoas que não sejam cidadãs norte-americanas e tenham estado no Brasil.

Não por coincidência, os três primeiros lugares mundiais em número de mortos por covid-19 são de políticos que, no início, menosprezaram a pandemia - Donald Trump, Boris Johnson e Jair Bolsonaro.

Quando avistou um tsunami de casos em um país sem sistema público de saúde, Trump corrigiu o curso e assumiu a necessidade de isolamento social - por mais que seu comportamento tenha permanecido errático e ele tenha pressionado para que a economia voltasse antes da hora.

O primeiro-ministro britânico, que demorou para tomar uma atitude, acreditando que o fato de estar em uma ilha protegeria o Reino Unido, quase morreu de covid - o que, junto com milhares de mortes, ajudou a mudar seu ponto de vista

Bolsonaro, contudo, continuou abraçado no negacionismo científico, dizendo que a morte faz parte da vida e defendendo o "elixir mágico" da cloroquina. Até ganhou de Trump uma remessa de 2 milhões de comprimidos do remédio que não tem eficácia comprovada para o tratamento da doença. Eficácia tem o isolamento social, contra o qual ele faz campanha.

Entrevistei, junto com Carlos Madeiro, pelo UOL, o médico e neurocientista Miguel Nicolelis, na manhã desta sexta (5). Ele, que é professor catedrático da faculdade de medicina da Universidade Duke, nos Estados Unidos, afirmou que imagem do governo brasileiro na comunidade científica está na sarjeta. "Tenho 59 anos. Viajo pelo mundo há 30 sem parar. Nunca vi o Brasil descer a patamares tão baixos de crítica."

Nicolelis disse que devemos passar o Reino Unido em número de mortos em breve e há uma grande chance de chegar a 125 mil óbitos até agosto, colando nos Estados Unidos (que, hoje, ostenta 110 mil mortos) - uma nação com 110 milhões de habitantes a mais e sem sistema público de saúde.

Trump deve fazer algum afago voltado ao público interno de Bolsonaro, e segue o jogo. Bolsonaro deve dizer que discorda da avaliação, mas que ele tem o direito de dizer o que quiser ou que ele não disse o que efetivamente disse. Viralatismo puro.

O que incomoda é que uma dor no peito de Bolsonaro pela "traição" de seu ídolo não é nada em comparação à angustiante dor no peito sentida dias antes de morrer por mais de 34 mil brasileiros. Tivemos ao menos, um morto por covid-19 por minuto, nas últimas 24 horas.

"A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo", disse Bolsonaro. Mortos que, talvez, estivessem vivos se o país contasse com um presidente que realmente levasse a sério o seu próprio lema: "Brasil acima de tudo".