Bolsonaro volta a dizer que morrer é normal no dia em que óbito é recorde
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Bolsonaro não consegue apenas lamentar os óbitos por covid-19. O instinto de sobrevivência do presidente brota de suas entranhas e irrompe pela boca, impedindo-o de fazer um comentário em que simplesmente transmita empatia. "A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo." Foi assim que ele respondeu a um convite de um de seus apoiadores para enviar uma mensagem de conforto aos familiares das vítimas do coronavírus, nesta terça (2), na porta do Palácio da Alvorada.
O número de mortes registradas em 24 horas pela doença bateu novo recorde hoje: 1.262. Até agora, foram 31.199 óbitos oficiais - considerando que o número é apenas uma amostra da realidade devido à subnotificação.
Focado em si mesmo, ele trata a tragédia como se fosse algo natural - menosprezo que é fruto de uma narrativa que buscar terceirizar sua responsabilidade. Por que se elas acontecem de qualquer forma, como ele prega, nada que o mandatário faça pode interferir no curso natural da doença, correto?
Não é a primeira vez que ele faz um "lamento condicionado", com um porém. O que prova não ser descuido, mas método.
"Vão morrer alguns [idosos e pessoas mais vulneráveis] pelo vírus? Sim, vão morrer. Se tiver um com deficiência, pegou no contrapé, eu lamento", disse ao apresentador Ratinho, no SBT, no dia 20 de março.
"Infelizmente algumas mortes terão. Paciência, acontece, e vamos tocar o barco. As consequências, depois dessas medidas equivocadas, vão ser muito mais danosas do que o próprio vírus", afirmou em 27 de março ao jornalista José Luiz Datena, na Bandeirantes.
"Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós iremos morrer um dia", disse no dia 29 de março, após ter provocado uma aglomeração em uma caminhada com apoiadores no Distrito Federal.
Esse comportamento do "morrer faz parte" ganhou espaço em veículos de comunicação de todo o mundo quando, em 28 de abril, ao ser questionado sobre o fato de o Brasil ter superado a China em número de mortos por Covid-19, debochou:
"E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre." Enquanto isso, sua claque ria em frente ao Alvorada.
A partir daí, foi só ladeira abaixo:
"O Brasil está quebrando. E depois de quebrar, não é como alguns dizem, 'a economia recupera'. Não recupera. Vamos ser fadados a viver em um país de miseráveis, como tem alguns países da África Subsaariana. Está morrendo gente? Tá. Lamento? Lamento, lamento. Mas vai morrer muito, muito, mas muito mais se a economia continuar sendo destroçada por essas medidas [de isolamento social]", afirmou no dia 14 de maio.
Não duvido que o presidente lamente.
Lamenta que governadores e prefeitos não tenham seguido suas ordens para a reabertura da economia.
Lamenta que o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional não permitam que (nem sempre) ele faça tudo o que quiser com a coisa pública.
Lamenta que, apesar de sua campanha pelo uso amplo do "elixir mágico", médicos e cientistas continuam avisando a população de que não há provas de eficácia da cloroquina e que o melhor remédio ainda é o isolamento.
Lamenta que a porcentagem terraplanista de brasileiros é pequena e que, apesar do ambiente de ampla desinformação, uma grande maioria ainda prefere ouvir pessoas que estudaram anos para entender o que fazer diante de uma pandemia assassina do que dar ouvidos ao presidente e seus aliados, que tiraram sua especialização em infectologia pela Universidade do WhatsApp.
Bolsonaro segue apostando que dezenas de milhares de mortes irão impactar menos no povão do que milhões de desempregados e, ao invés de agir como um líder que articula a nação para atravessar um momento sombrio, alia-se ao vírus. Sua maior preocupação não é o colapso do sistema de saúde, decorrência de um tsunami de casos de covid, mas transferir a culpa pela queda no PIB pensando em 2022.
Muitos dirão que lamentam ter um presidente assim. Mas, infelizmente, lamentar não basta.