Ser antirracista requer investimento, mas empresas preferem cortar custos
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Empresas precisam mudar urgentemente sua política de fornecedores de produtos e serviços, investigando e monitorando seus negócios e prevenindo tragédias. O problema é que isso significa aumento de custos. O que muitas toleram menos que o racismo.
Não torturar e assassinar clientes negros por racismo em suas dependências deveria ser condição básica para uma empresa poder operar. Mas como o tema não causava prejuízos, como já acontece quando ela comercializa certos produtos com trabalho escravo, segue o jogo.
Os protestos em várias cidades contra a morte de João Alberto Freitas, na véspera do Dia da Consciência Negra, por um segurança e um policial brancos, em uma unidade do Carrefour, em Porto Alegre, podem mudar essa situação. Pois, se continuarem, vão alterar a percepção de uma parte dos consumidores e dos investidores sobre o seu principal ativo: a marca.
Uma empresa de computadores e uma confecção não vendem máquinas e roupas, por exemplo, e sim estilo de vida. Do que somos. Do que gostaríamos de ser. Do que deveríamos ser - não em nossa opinião, necessariamente, mas de uma construção do que é bom e do que é ruim.
Agora imagine: o que acontece quando uma marca que levou décadas para ser construída no imaginário dos brasileiros, usando propagandas para se associar a elementos, como respeito e qualidade, é conectada a algo ultrajante e inaceitável como o assassinato de clientes negros em um ato racista? Por mais que boicotes arrefeçam no longo prazo, a percepção de risco afugenta investimentos no curto.
E não adianta tirar o corpo fora. Empresas devem atuar para que ela e seus fornecedores de produtos e serviços estejam em conformidade com a legislação internacional, com a lei de cada país e com suas próprias políticas corporativas.
Quando o Carrefour contrata uma terceirizada, é responsável pelo que os seguranças fazem em suas dependências. Se a rede de supermercados é incapaz de encontrar uma empresa de segurança com custo competitivo que seja capaz de cumprir os "valores" que ela diz exigir, precisa tirar mais dinheiro do bolso. E, no limite, se não houver tal empresa no mercado, contratar diretamente esses trabalhadores e treiná-los.
Foi um erro que, após um crime de ódio, a primeira nota emitida pelo Carrefour tenha sido apenas criticar a terceirizada. "Tomamos as providências cabíveis para que os responsáveis sejam punidos legalmente." O problema é que os responsáveis incluíam o Carrefour. Lembra os fazendeiros que, flagrados por trabalho escravo, culpam o terceirizado.
Tanto que, algum tempo depois, o próprio CEO da empresa teve que vir a público, em horário nobre na TV, para dizer o que faltou na nota anterior: um pedido de desculpas aos clientes, à sociedade e aos empregados.
Também disse que divulgariam ações corporativas para dar uma resposta a isso em breve. Porém, a rede está atrasada com isso pelo menos 11 anos, quando Januário Alves de Santana foi acusado de estar roubando seu próprio automóvel em uma loja do Carrefour, em Osasco (SP), e acabou submetido a uma sessão de tortura por cerca de 20 minutos. "O que você fazia dentro do EcoSport, ladrão?", perguntaram, enquanto cinco pessoas davam chutes, murros, coronhadas, na sua cabeça, na sua boca.
Funcionários da empresa dizem que mudanças internas ocorreram após o episódio, mas não foram suficientes. De fato, o que aconteceu em 2020 é a continuidade de 2009.
Tanto que a empresa insiste em enfrentar apenas um dos lados da questão. Na propaganda da TV, o CEO disse que a maioria dos seus "colaboradores" são negros e negras, mas que o Carrefour precisa de mais ações efetivas para a cultura de diversidade.
É fundamental que empresas contratem pessoas negras para o seu quadro de empregados, garantindo não apenas pluralidade e representatividade, mas permitindo uma mudança em sua visão de mundo. A presença de negros em postos-chave, e não apenas em trabalhos com remuneração mais baixa, ajuda a reformular o racismo nas políticas corporativas.
Mas essa caminhada é mais lenta e há urgência. Por isso, empresas devem mudar sua política de fornecedores de produtos e serviços, adotando ações concretas para a devida diligência, investigando seus negócios e prevenindo tragédias como essa. Imediatamente.
Acompanho há quase duas décadas o comportamento de empresas quando a políticas trabalhistas, sociais e ambientais junto a suas redes de fornecedores. E posso dizer que medidas rápidas podem ser tomadas. Se elas estiverem dispostas a pagar por isso.
Investimento social privado é diferente de responsabilidade social empresarial (RSE). O primeiro inclui a construção de escolas e doação alimentos. É importante, mas não é o mais importante. RSE, por outro lado, é garantir que a atuação da empresa não degrade a qualidade de vida do bairro, da cidade, do estado ou do país.
Fazer investimento social privado é bem mais barato que responsabilidade social empresarial porque, esta segunda, demanda investimento pesado para mudar a forma como a empresa atua.
Pagar mais por terceirizadas que treinem seus empregados e não contratem racistas psicopatas ou assumir esses trabalhadores diretamente quando não conseguir encontrar alternativas custa caro. Treinar seus próprios empregados para não perpetuarem comportamentos racistas também.
Colocar recursos para criar sistemas que permitam o rastreamento de cadeias produtivas, evitando receber produtos com trabalho escravo, desmatamento e expulsão de populações indígenas pode reduzir a margem de lucro. Mas se empresas têm atuado, lentamente, neste flanco, podem atuar no primeiro.
O ponto é que, não raro, é considerado bom o gestor em uma empresa aquele que se guia pelo corte de custos e não necessariamente por respeitar leis e regras.
O discurso do respeito total à sustentabilidade é feito, muitas vezes, peça de marketing. Dentro, departamentos que cuidam de responsabilidade social são tratados, não raro, como "ativistas" e "chatos" e emparedados pelos departamentos comerciais.
A política de contratação de terceirizados quase nunca passa pelas mãos dessas instâncias, se passasse a história poderia ser diferente.
E tudo isso não vale apenas para uma marca. No dia 14 de fevereiro do ano passado, Pedro Henrique de Oliveira Gonzaga, 19 anos, foi morto por um segurança do supermercado Extra, do Grupo Pão de Açúcar, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Ao "conter" o jovem negro, ele deu uma gravata e jogou seu peso sobre ele. No vídeo, que circulou pelas redes sociais, testemunhas alertaram que Pedro estava "sufocando" e ficando "roxo", mas a sessão de tortura continuou. Com parada cardiorrespiratória, foi socorrido por bombeiros e não resistiu. A mãe do rapaz presenciou a cena. Pedia para o segurança parar.
O fato de o racismo ser estrutural significa que ele guia nossas relações, não é monopólio desta ou daquela empresa.
Ser antirracista tem um custo, pois significa mudar profundamente as práticas empresariais em um país em que muitos negócios nunca se importaram se eram vetores do racismo ou não. É hora de serem convencidos de que precisam começar a investir em mudanças. Pelo menos, os que quiserem ter um futuro.