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Leonardo Sakamoto

Governo tem poder para expropriar vacina de covid comprada por rede privada

DIRK WAEM / POOL / AFP
Imagem: DIRK WAEM / POOL / AFP

Colunista do UOL

05/01/2021 10h04

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Por Daniel A. Dourado*, especial para a coluna

O Estado tem o dever de assegurar que todas as pessoas que precisem tenham acesso à vacinação, independente da capacidade de pagar. Num cenário extremo como uma pandemia, não faz sentido ter vacina na rede privada antes de ter na rede pública.

A negociação para compra de vacinas contra covid-19 feita pela Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVac) trouxe uma grande preocupação: é possível que comece a venda de vacinas na rede privada antes de existir vacinação gratuita no Sistema Único de Saúde (SUS)?

Por isso, é essencial haver regulação para garantir acesso às vacinas gratuitamente aos grupos prioritários. Já há fundamento constitucional e legal para esse tipo de medida. A requisição administrativa é um instrumento jurídico que possibilita o uso de bens ou serviços privados pelo Estado em caso de necessidade coletiva.

No caso de iminente perigo público, as autoridades podem usar propriedade particular. Os proprietários têm direito a indenização depois, se houver prejuízo. No caso de escassez de vacinas na rede pública, configuram-se as condições para requisição administrativa de vacinas compradas por clínicas privadas.

É possível pensar em uma solução por meio de legislação, como há atualmente projetos de lei no Congresso para regulamentar a requisição de leitos ou mesmo de hospitais particulares para atender demanda do poder público em razão da pandemia e para estabelecer uso compulsório de leitos privados para pacientes com Síndrome Respiratória Aguda Grave.

Prioridade deve ser a distribuição gratuita de vacinas

Tanto melhor se essas soluções não sejam necessárias e que haja equilíbrio entre a oferta na rede privada e um eficiente plano nacional de vacinação contra a covid-19. Mas não pode ser admitida qualquer resposta para essa situação que não priorize a distribuição gratuita das vacinas para a população pelo SUS.

É preciso dizer que essa questão surge neste momento principalmente em razão da desarticulação do Programa Nacional de Imunizações (PNI) na atual gestão do Ministério da Saúde. Referência internacional pelo sucesso da cobertura atingida em diversas vacinas, hoje o Brasil aparece na incômoda e trágica situação de ser um dos países de renda média mais atrasados na estratégia vacinal da pandemia.

Além disso, a possibilidade de que clínicas particulares saiam na frente chama a atenção para um ponto importante: a relação entre público e privado na saúde do país.

O liberalismo econômico e o SUS

O Brasil tem o maior sistema público e universal de saúde do mundo. O SUS é uma grande conquista da sociedade brasileira, criado para garantia do direito à saúde reconhecido pela Constituição. Um sistema de proteção social financiado por impostos e responsável pela promoção, prevenção e recuperação da saúde de todos os cidadãos, de forma igualitária e equânime, é a maior política de redução de desigualdades do país.

Mas existe uma agenda política antiga, estimulada por organizações internacionais — como o Banco Mundial — de direcionamento de políticas sociais de saúde para um recorte liberal (no sentido econômico do termo). A ideia é que o sistema de saúde deveria ser focalizado, ou seja, voltado para a assistência da população mais pobre.

Para isso, em vez de ser baseado na integração entre cuidados individuais e ações de saúde pública, passaria a ser voltado principalmente para a assistência individual, a partir de uma cobertura mínima de ações e serviços, com mais espaço para a complementação pela rede privada.

Essa agenda sempre teve adeptos no Brasil e, desde 2016, eles estão na gestão nacional do SUS.

Cotado para ministério, Barros defendeu diminuir o SUS

Durante o governo Michel Temer, um ministro da Saúde declarou expressamente que era preciso diminuir o tamanho do SUS porque não considerava possível "sustentar o nível de direitos que a Constituição determina". E apresentou a ideia dos "planos de saúde acessíveis" como solução para complementar a cobertura do SUS.

Trata-se do deputado Ricardo Barros, hoje líder do governo Bolsonaro na Câmara, que, não por acaso, propõe uma nova Assembleia para elaborar uma nova Constituição. Barros é cotado, novamente, para substituir Eduardo Pazuello no comando do ministério.

Essas propostas são muito alinhadas com a ideologia do atual ministro da Economia, Paulo Guedes.

Vale dizer que a Constituição de 1988 já assegura que assistência à saúde é livre à iniciativa privada. No entanto, a regulação das ações e serviços de saúde cabe ao Poder Público. Há um espaço para a exploração das atividades econômicas relacionadas aos cuidados de saúde, mas, antes disso, a saúde é um direito social e o Estado brasileiro tem obrigação de garantir todos os meios para isso.

É importante aproveitar a oportunidade para lembrar que defender o SUS não é só um mote. É também disputar a narrativa política e mostrar que o SUS é um patrimônio valiosíssimo do povo brasileiro e que está sendo ameaçado pelo desfinanciamento, pelas políticas de austeridade a qualquer custo. Defendam o SUS.

(*) Daniel A. Dourado é médico e advogado sanitarista, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (Cepedisa/USP) e do Institut Droit et Santé da Universidade de Paris.