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Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Execução sumária pela polícia reforça caráter de chacina no Jacarezinho

Colunista do UOL

15/10/2021 13h20

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Logo após a Chacina do Jacarezinho, no qual 27 moradores e um agente foram mortos em uma ação tosca e violenta do poder público do Rio de Janeiro no dia 6 de maio, a Polícia Civil correu para explicar que ficou vivo quem não reagiu. Nesta quinta (14), o Ministério Público discordou diante da Justiça, apresentando denúncia contra dois policiais por execução e manipulação da cena do crime. É a primeira, mas não deve ser a única.

Omar Pereira da Silva estava rendido, ferido e encurralado em um quarto de criança e foi executado sumariamente. Depois, os policiais manipularam a cena do crime, removendo o corpo sem perícia e plantando uma granada, e apresentando armas que não pertenciam à vítima, para justificar a sua morte, segundo o MP-RJ. Um dos agentes está sendo acusado de homicídio doloso e os dois de fraude processual.

A denúncia é um banho de água fria nos muitos que gastaram mais tempo passando pano para a letalidade policial do que entender como a operação mais letal da história no Rio se conectava à política de segurança fluminense. Não foram poucos os que defenderam que a chacina ocorreu totalmente dentro da lei e que era um exagero chamar o que houve de execução sumária. Até porque, convenhamos, as vítimas não moravam em bairro de bacana, nem eram brancas ou ricas.

Quando um policial leva um tiro e morre no início de uma operação, como foi o caso, ela deve ser cancelada sob o risco de abandonar a pauta original e se transformar em vingança de seus colegas contra a comunidade em que a morte aconteceu. Tanto que após a morte de policiais em confronto com criminosos, comunidades ficam em pânico esperando por execuções de moradores em número muito maior como retaliação.

Isso leva a uma grande sessão de justiciamento, o que se contrapõe à ideia de Justiça e do que está previsto na Constituição de 1988. O que se encaixa perfeitamente na sociedade miliciana que vem sendo construída no Rio, com o apoio de governantes estaduais e do próprio presidente da República. E em uma sociedade miliciana não há suspeitos, só culpados.

O delegado Felipe Curi, do Departamento Geral de Polícia Especializada (DGPE), afirmou, na coletiva à imprensa logo após a ação, que todos os civis foram mortos em troca de tiros com agentes de segurança. "Não tem nenhum suspeito aqui. A gente tem criminoso, homicida e traficante." E lamentou: "O que causa muita dor na gente é a morte do nosso colega".

Da mesma forma, Hamilton Mourão, vice-presidente da República, afirmou, no dia 7 de maio que os mortos eram "tudo bandido", sem apresentar evidências disso. O general ainda completou: "Entra um policial numa operação normal e leva um tiro na cabeça em cima de uma laje."

Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil afirmou à coluna que ter levado uma bala torna uma pessoa automaticamente suspeita. "Morrer na mira da polícia é um atestado de suspeição", avalia.

"Existe uma certa legitimação da violência policial quando há 'suspeitos' e 'favelas' do outro lado. Se fosse em um condomínio na Barra da Tijuca, onde moram os ricos, não haveria 'suspeitos' e os nomes adotados para a operação seriam muito piores do que 'chacina' e 'massacre' ", afirma.

Essa visão faz da Justiça algo desnecessário. Porque a própria polícia, cuja função é investigar e prender quem comete crimes, também assume o papel de acusar, julgar e executar. Relatos de moradores acusam a polícia de matar pessoas que não tinha envolvimento com o crime organizado ainda estão sendo investigados pelo MP.

O deputado federal Marcelo Freixo (PSB-RJ) afirmou à coluna na época que a operação não precisaria ter sido como foi, lembrando que as duas maiores apreensões de fuzis no Rio de Janeiro não deram um tiro sequer, usando apenas o serviço de inteligência das forças de segurança pública. Uma delas foi a apreensão de 117 fuzis atribuídos a Ronnie Lessa, acusado de matar a vereadora Marielle Franco.

E que apesar da justificativa original da operação (o enfrentamento do aliciamento de crianças e adolescentes para o tráfico de drogas) ser pauta importante, a polícia fez uma operação armada na favela no lugar de investigar onde os jovens são usados, como estava a política educacional e de assistência social e envolver outras estruturas de atendimento do Estado.

Ações de 'limpeza' em comunidades acabam ajudando o trabalho de milicianos

Na coletiva à imprensa, o delegado Rodrigo Oliveira, subsecretário de Planejamento e Integração Operacional da Polícia Civil, criticou o que chamou de "ativismo judicial" que dificulta as ações da polícia. "Eu queria deixar muito claro que o sangue desse policial que faleceu hoje em prol da sociedade de alguma forma está na mão dessas pessoas, dessas entidades", disse.

Questionado, disse que não se referia ao STF, apesar de ser claramente uma cutucada. A corte limitou ações em comunidades pobres durante a pandemia em julho do ano passado. O Ministério Público, que precisa ser avisado com antecedência, só foi informado da operação no Jacarezinho após seu início.

Como escrevi na época, com isso o delegado adota duas estratégias comuns ao bolsonarismo: a de afirmar que quem concorda com ele faz parte da "sociedade de bem", em detrimento ao inimigo, a "sociedade do mal", que é quem discorda dele - como as famílias dos mortos. E a outra é acusar antes de ser acusado. Coloca o sangue do policial nas mãos dos críticos da ação antes que a sociedade coloque o sangue dos 27 nas mãos do poder público.

O policial André Frias poderia estar vivo, bem como os outros 27, caso as forças policiais no Brasil investissem no trabalho de inteligência. Isso poderia levar criminosos à Justiça e não ao cemitério, como reza a Constituição.

Como não temos um trabalho de inteligência eficaz, com integração das bases das polícias e cruzamento de dados de segurança pública, que torne possível cortar o fornecimento de armas ilegais, bloquear a movimentação financeira dos envolvidos, atingir os financiadores do crime organizado (que, não raro, moram em bairros de ricos) e localizar e isolar criminosos, a alternativa adotada é ir para a porrada, matando e morrendo.

Por fim, mas não menos importante, ações de "limpeza" como a do Jacarezinho deixam milicianos mais à vontade para ocupar comunidades. E passam uma sensação de segurança a parcelas das classes média e alta, mostrando que o governo está fazendo algo. Mesmo que esse algo seja uma chacina.

Foi o mesmo que aconteceu com a intervenção do Exército na segurança pública do Rio, durante o governo Michel Temer - comandada, aliás, pelo atual ministro da Defesa, general Braga Netto. Depois com o, agora, ex-governador do Rio, Wilson Witzel, que chegou a pregar a execução sumária de suspeitos. O governador Cláudio Castro (PL), tentando se firmar como candidato bolsonarista à eleição de 2022, aprofunda a mesma estratégia.

Enquanto isso, o governo Bolsonaro atua para sabotar o trabalho dos policiais, aumentando a quantidade de armas em circulação, incluindo fuzis. Armamento do mercado legal, em algum momento, abastece o ilegal, como apontam especialistas. O que anima traficantes e milicianos. E, mesmo assim, muitos policiais vibram por Bolsonaro, como um touro que, inadvertidamente, torce pelo toureiro.