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Com nova chacina no Rio, polícia manda recado ao STF: aqui, você não manda
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Oito dias após o Supremo Tribunal Federal obrigar o governo do Rio de Janeiro a adotar medidas para reduzir a letalidade policial em comunidades pobres em até 90 dias, oito pessoas foram mortas em uma operação da Polícia Militar em conjunto com a Polícia Rodoviária Federal na Vila Cruzeiro, na manhã desta sexta (11). Com essa nova coleção de mortes, a polícia manda um recado ao STF: aqui, no Rio, você não apita nada.
Em agosto de 2020, a maioria dos ministros do Supremo havia confirmado uma liminar concedida, em junho daquele ano, pelo seu colega Edson Fachin, proibindo a realização de operações policiais em favelas durante a pandemia sob pena de responsabilização criminal e civil. Ações só poderiam ser autorizadas em caráter "absolutamente excepcional", justificadas e comunicadas com antecedência o Ministério Público.
Mas a ordem do STF não impediu que a pior chacina policial da história do Rio ocorresse, entre outras.
O objetivo da ação seria prender traficantes e desmantelar uma quadrilha de roubo de cargas. O resultado imediato, contudo, foi afastar 5.740 estudantes de 17 escolas municipais da região, prejudicando ainda mais quem já havia ficado um longo tempo longe da sala de aula por conta da covid-19. E, claro, garantir que a população ficasse aterrorizada com o que chamaram de "bombardeio", segundo relato de morador colhido por Marcela Lemos, do UOL.
Em 6 de maio do ano passado, 27 moradores e um policial civil foram mortos em uma ação violenta no que ficou conhecida como a Chacina do Jacarezinho. O delegado Felipe Curi, do Departamento Geral de Polícia Especializada (DGPE), chegou a afirmar em coletiva à imprensa: "Não tem nenhum suspeito aqui. A gente tem criminoso, homicida e traficante".
Cinco meses depois, o Ministério Público discordou, apresentando denúncia contra policiais por execução e manipulação da cena do crime. Por exemplo, Omar Pereira da Silva estava rendido, ferido e encurralado em um quarto de criança e foi executado sumariamente. Depois, os policiais manipularam a cena do crime, removendo o corpo sem perícia, plantando uma granada e apresentando armas que não pertenciam à vítima, para justificar a sua morte, segundo o MP-RJ.
E após a morte de um policial militar por criminosos, o Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ), foi palco de uma operação policial que começou no dia 19 de novembro do ano passado e terminou na morte de nove pessoas. Os corpos foram retirados de um manguezal por moradores, que apontam que a ação foi motivada por vingança após a morte de um sargento.
A Polícia Civil chegou a divulgar uma lista de identificação dos mortos na chacina, em São Gonçalo, acompanhada da ficha criminal das vítimas que tinham passagem pela polícia. O que funcionou como uma tentativa de legitimar a letalidade da operação.
"Citar as anotações criminais das vítimas da intervenção policial no Salgueiro soa como forma de legitimar a operação da Polícia Militar, como se este fato em si desse ao policial o direito de atirar", afirmou Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, na época.
Se um presidente não respeita o STF, por que a polícia deveria respeitar?
O Brasil não tem pena de morte e cabe aos agentes de segurança públicos fazer cumprir o que está no ordenamento jurídico, com a Polícia Militar detendo suspeitos e a Polícia Civil investigando as responsabilidades. Ou seja, garantir aos criminosos o rigor da lei e não a arbitrariedade policial.
A inteligência policial serve para investigar a morte de agentes de segurança a fim de identificar o criminoso, processá-lo, julgá-lo e, confirmada a sua culpa, sentenciá-lo e prendê-lo. Já a vingança policial vem como um porrete e não pergunta o nome, só verifica o endereço. Tanto que após a morte de policiais por traficantes, comunidades ficam em pânico esperando por execuções de moradores em um número muito maior.
Sessões de justiçamento se contrapõem à ideia de Justiça e do que está previsto na Constituição Federal de 1988. Mas se encaixam perfeitamente na sociedade miliciana que vem sendo construída no Rio, com o apoio de governantes estaduais e do próprio presidente da República. E em uma sociedade miliciana não há suspeitos, só culpados, que precisam ser punidos.
Essa cultura antidemocrática - que visa a escantear instituições, como o devido processo legal - é anterior ao bolsonarismo, mas se alimenta ferozmente dele, ignorando a presunção de inocência. Ainda mais no Rio de Janeiro, epicentro pulsante de uma República miliciana que vai seguir causando vítimas muito tempo depois que seu padrinho deixar a política.
Se o próprio presidente da República ataca diuturnamente o STF, chegando a ignorar suas determinações, por que parte dos policiais no Rio de Janeiro teria comportamento diferente?
Por fim, a ação na Vila Cruzeiro ocorre 20 dias após o governador Cláudio Castro (PL) anunciar o "Cidade Integrada", programa eleitoreiro que diz pretender "retomar" territórios dominados por traficantes e milicianos. Ao que tudo indica, o programa bebe na melhor tradição de projetos para locais pobres, "integrando" na base do tiro e bomba ao invés da garantia de serviços públicos que garantiriam os direitos mais básicos.