No Natal, você trata doméstica como se 'fosse da família' ou trabalhadora?
Por trás de uma linda ceia ou almoço de Natal, não raro, há uma empregada doméstica que passou o dia limpando, arrumando, cozinhando, cuidando. Enquanto as classes média e alta, da esquerda à direita, discutem o drama das brigas políticas, muitas vezes esquecem o da sub-remuneração e do desrespeito a essa categoria formada majoritariamente de mulheres pobres e negras.
"Ah, mas eu trato a Soninha como se fosse da família." E por trás dessa frase, há, também não raro, um "membro da família" que ganha menos do que o piso da categoria, menos benefícios e proteções do que as estabelecidas pela convenção coletiva e menos direitos do que aqueles descritos no artigo 7º da Constituição Federal e na CLT.
É "da família", mas não viaja para a Itália nas férias como os demais, não ganha presentes caros no Natal como os demais, não tem o mesmo plano de saúde dental como os demais, não estuda na mesma escola chique como os demais ou nem estuda porque estava trabalhando. Não se senta junto à mesa para desfrutar da ceia de Natal que ajudou a fazer.
Melhor seria se muitas dessas casas tratassem a pessoa pelo que ela é de fato, uma trabalhadora, garantindo a ela tudo o que as regras determinam. Não, ela não quer um panetone trufado no final do ano, mas sim que o seu FGTS seja depositado em dia. Não, ela não quer o brinquedo velho do Enzo, que cresceu, para dar ao seu neto. Ela deseja que o patrão não bata à sua porta na madrugada para esquentar as sobras da ceia e fazer um lanchinho.
Serviço doméstico não é encarado como trabalho no Brasil, mas uma obrigação relacionada a um gênero e, muitas vezes, a uma cor de pele - reforçando que tivemos uma abolição incompleta em 13 de maio de 1888, em que não foi garantida a independência econômica aos escravizados.
Nesse contexto, a superexploração de mulheres negras tem carregado nos ombros a reprodução social tanto de ricos quanto de pobres na maior parte da história do Brasil. Até porque, não é incomum, que uma menina seja obrigada a se transformar em mãe de seus irmãos enquanto a sua mãe vai trabalhar fora.
Durante as discussões sobre a emenda constitucional que elevou os direitos das trabalhadoras empregadas domésticas para um patamar mais próximo do restante da população, em 2013, lemos e ouvimos um festival de preconceitos. Ainda hoje, escutamos ecos de reclamações sobre o inferno no qual mergulharam as vidas dos patrões a partir do momento que "essa gente" passou a ganhar "igual a eles".
Na época, coletei vários exemplos desse comportamento nas redes: "Pedi para a mocinha que trabalha lá em casa ficar mais duas horinhas porque o Arnaldo ia se atrasar do tênis e ela disse que não. Disse que tinha os filhos em casa. E os meus?"; "Pediu demissão e se foi. E tá me processando por direitos! Eu que a tratava como uma filha"; "Ela disse que não quer mais dormir no quartinho dela porque é fechado e não tem janela. Na favela dela, também não deve ter e ela nem reclama".
E como não citar um exemplo mais recente, de 2020, do então ministro da Economia, Paulo Guedes: "O câmbio não está nervoso, mudou. Não tem negócio de câmbio a R$ 1,80. Todo mundo indo para a Disneylândia, empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada".
Naquele momento, o Brasil acordou com "especialistas" no rádio ou na TV dizendo que não era o momento de garantir direitos a determinada categoria de trabalhadoras porque a economia não aguentaria e eles seriam demitidas. Só o fato de essas posições ganharem tração indica que uma parte da sociedade tinha normalizado a superexploração de um grupo de pessoas.
A Organização Internacional do Trabalho demorou meio século para conseguir aprovar uma convenção sobre os direitos das trabalhadoras empregadas domésticas. A "civilizada" Europa precisava de mão de obra barata, mas não queria garantir aos migrantes os mesmos direitos de quem nasceu no continente. E, através dessa exploração do trabalho informal, regulava o custo de vida em várias economias.
No Brasil, ainda há compradores que procuram um "Quarto de Empregada" ao adquirir um imóvel novo, um espaço destacado ao lado da cozinha e da lavanderia - versão contemporânea da senzala. Se uma pessoa tiver que dormir no serviço, deveria compartilhar um quarto de hóspedes, por exemplo.
Mas ela é "quase" da família. E nesse "quase" residem 523 anos de História. Somos (quase) um país justo, conseguimos ser (quase) civilizados, a dignidade aqui é (quase) respeitada, a gente (quase) trata pobre com respeito. A escravidão foi (quase) erradicada. Quase.
Se por aqui, até um desembargador de Santa Catarina foi alvo de operação de resgate de uma trabalhadora doméstica da escravidão pelo governo federal e jura que ela, que passou três décadas analfabeta, perdendo os dentes e alijada das férias internacionais da família, era como uma filha para ele, consegue leva-la de volta para casa com a benção do STJ e do STF, por que um naco da sociedade não continuaria achando que tem uma doméstica para dizer que é "da família" e fazer dela o que quiser?
Feliz Natal.