Leonardo Sakamoto

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Opinião

No Natal, você trata doméstica como se 'fosse da família' ou trabalhadora?

Por trás de uma linda ceia ou almoço de Natal, não raro, há uma empregada doméstica que passou o dia limpando, arrumando, cozinhando, cuidando. Enquanto as classes média e alta, da esquerda à direita, discutem o drama das brigas políticas, muitas vezes esquecem o da sub-remuneração e do desrespeito a essa categoria formada majoritariamente de mulheres pobres e negras.

"Ah, mas eu trato a Soninha como se fosse da família." E por trás dessa frase, há, também não raro, um "membro da família" que ganha menos do que o piso da categoria, menos benefícios e proteções do que as estabelecidas pela convenção coletiva e menos direitos do que aqueles descritos no artigo 7º da Constituição Federal e na CLT.

É "da família", mas não viaja para a Itália nas férias como os demais, não ganha presentes caros no Natal como os demais, não tem o mesmo plano de saúde dental como os demais, não estuda na mesma escola chique como os demais ou nem estuda porque estava trabalhando. Não se senta junto à mesa para desfrutar da ceia de Natal que ajudou a fazer.

Melhor seria se muitas dessas casas tratassem a pessoa pelo que ela é de fato, uma trabalhadora, garantindo a ela tudo o que as regras determinam. Não, ela não quer um panetone trufado no final do ano, mas sim que o seu FGTS seja depositado em dia. Não, ela não quer o brinquedo velho do Enzo, que cresceu, para dar ao seu neto. Ela deseja que o patrão não bata à sua porta na madrugada para esquentar as sobras da ceia e fazer um lanchinho.

Serviço doméstico não é encarado como trabalho no Brasil, mas uma obrigação relacionada a um gênero e, muitas vezes, a uma cor de pele - reforçando que tivemos uma abolição incompleta em 13 de maio de 1888, em que não foi garantida a independência econômica aos escravizados.

Nesse contexto, a superexploração de mulheres negras tem carregado nos ombros a reprodução social tanto de ricos quanto de pobres na maior parte da história do Brasil. Até porque, não é incomum, que uma menina seja obrigada a se transformar em mãe de seus irmãos enquanto a sua mãe vai trabalhar fora.

Durante as discussões sobre a emenda constitucional que elevou os direitos das trabalhadoras empregadas domésticas para um patamar mais próximo do restante da população, em 2013, lemos e ouvimos um festival de preconceitos. Ainda hoje, escutamos ecos de reclamações sobre o inferno no qual mergulharam as vidas dos patrões a partir do momento que "essa gente" passou a ganhar "igual a eles".

Na época, coletei vários exemplos desse comportamento nas redes: "Pedi para a mocinha que trabalha lá em casa ficar mais duas horinhas porque o Arnaldo ia se atrasar do tênis e ela disse que não. Disse que tinha os filhos em casa. E os meus?"; "Pediu demissão e se foi. E tá me processando por direitos! Eu que a tratava como uma filha"; "Ela disse que não quer mais dormir no quartinho dela porque é fechado e não tem janela. Na favela dela, também não deve ter e ela nem reclama".

E como não citar um exemplo mais recente, de 2020, do então ministro da Economia, Paulo Guedes: "O câmbio não está nervoso, mudou. Não tem negócio de câmbio a R$ 1,80. Todo mundo indo para a Disneylândia, empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada".

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Naquele momento, o Brasil acordou com "especialistas" no rádio ou na TV dizendo que não era o momento de garantir direitos a determinada categoria de trabalhadoras porque a economia não aguentaria e eles seriam demitidas. Só o fato de essas posições ganharem tração indica que uma parte da sociedade tinha normalizado a superexploração de um grupo de pessoas.

A Organização Internacional do Trabalho demorou meio século para conseguir aprovar uma convenção sobre os direitos das trabalhadoras empregadas domésticas. A "civilizada" Europa precisava de mão de obra barata, mas não queria garantir aos migrantes os mesmos direitos de quem nasceu no continente. E, através dessa exploração do trabalho informal, regulava o custo de vida em várias economias.

No Brasil, ainda há compradores que procuram um "Quarto de Empregada" ao adquirir um imóvel novo, um espaço destacado ao lado da cozinha e da lavanderia - versão contemporânea da senzala. Se uma pessoa tiver que dormir no serviço, deveria compartilhar um quarto de hóspedes, por exemplo.

Mas ela é "quase" da família. E nesse "quase" residem 523 anos de História. Somos (quase) um país justo, conseguimos ser (quase) civilizados, a dignidade aqui é (quase) respeitada, a gente (quase) trata pobre com respeito. A escravidão foi (quase) erradicada. Quase.

Se por aqui, até um desembargador de Santa Catarina foi alvo de operação de resgate de uma trabalhadora doméstica da escravidão pelo governo federal e jura que ela, que passou três décadas analfabeta, perdendo os dentes e alijada das férias internacionais da família, era como uma filha para ele, consegue leva-la de volta para casa com a benção do STJ e do STF, por que um naco da sociedade não continuaria achando que tem uma doméstica para dizer que é "da família" e fazer dela o que quiser?

Feliz Natal.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL