Leonardo Sakamoto

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Opinião

Debate sobre taxação de compras até US$ 50 envolve trabalho escravo na Ásia

Antes de mais nada, um aviso: é claro que a classe média baixa deveria ter o direito a fazer compras no exterior tanto quanto a classe média alta e a classe alta voltam de Miami ou Nova York carregando muambas que custaram mais que os mil dólares isentos. Há hipocrisia nisso que precisa ser lembrada.

Dito isso, o principal ponto do debate sobre roupas encomendas encomendadas através de plataformas como Shopee, Shein e Ali Express não é tributário, mas trabalhista. Para além do risco a empregos nacionais na cadeia do vestuário (a esmagadora maioria da produção brasileira é vendida internamente), há a questão do trabalho escravo contemporâneo que vem sendo negligenciada no debate.

Não, nem toda peça de roupa barata produzida fora do Brasil teve trabalho escravo ou infantil. O preço para produzir aqui é maior do que em outros países por uma série de razões, que vão do câmbio a diferenças em regulações sociais e ambientais. Mas, sim, em muitos casos, há superexploração criminosa de trabalhadores em linhas de produção na China, no Sudeste Asiático, em Bangladesh e até no Nordeste da África.

Há quase 20 anos, os setores têxtil e de vestuário no Brasil vêm sendo pressionados para combater a exploração de trabalho escravo na produção da pluma do algodão no campo e na confecção de roupas nas cidades.

Graças à ação da política brasileira para a erradicação desse crime, centrado na figura dos grupos especiais de fiscalização móvel do governo federal, o país presenciou resgates de escravizados em oficinas que costuravam peças para Zara, M.Officer, Marisa, entre tantas outras marcas.

Ainda há muitos problemas, mas a situação melhorou em comparação ao cenário anterior. Lembrando sempre que garantir direitos e proteções previstas na legislação trabalhista não é favor, mas obrigação das empresas que lucram com o fruto do trabalho por aqui.

Mas levantamentos de cadeias produtivas realizados por organizações da sociedade civil apontam que, não raro, a produção importada a preços baixíssimos de fora do Brasil não respeita os padrões mínimos previstos nas convenções 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho, que tratam da escravidão, que dirá os princípios de empresas e direitos humanos das Nações Unidas.

Essas peças concorrem de forma desleal com a produção interna do Brasil, que precisa respeitar a lei. No longo prazo, o dumping social passa a ser usado como justificativa pelas empresas instaladas no Brasil para que a lei seja amenizada, seja no combate ao trabalho escravo, no enfraquecimento da inspeção pública, em novas reformas trabalhistas. Afinal, se eles podem, por que nós não?

Garantir a cobrança do tributo de importação, nesse sentido, contribui com o combate a esse crime contra os direitos humanos dentro e fora do Brasil. O que não é pouca coisa. Todo mundo fica horrorizado com histórias de jornadas de trabalho de mais de 70 horas semanais e prédios que desabam com centenas de costureiras escravizadas. Mas, na hora de comprar uma roupa, não pondera o que está por trás dela, levando em conta apenas o preço?

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É claro que os indivíduos mais ricos têm mais capacidade de fazer compras responsáveis, pagando mais por produtos feitos de forma digna, do que os mais pobres. Mas isso é um elemento que precisamos levar em consideração, caso desejamos de trabalhadores sejam respeitados por aqui.

E por lá também, porque a pressão internacional vem sendo capaz de forçar mudanças em cadeias de produção na Ásia. Lembrando que a China (que conta com leis trabalhistas) nem é o maior problema em comparação a países sequestrados pela corrupção, como Bangladesh.

Mesmo grandes empresas que brasileiras do varejo de vestuário que importam da produção asiática, pagando mais imposto, estão mais sujeitas ao escrutínio de suas cadeias produtivas do que as compras via plataformas. Há propostas circulando no parlamento, inclusive, para obrigar as importadoras à devida diligência, a fim de garantir que não estão adquirindo produtos oriundos dos sofrimento humano.

A aprovação pela Câmara dos Deputados de uma tributação de 20% a compras de até 50 dólares vai servir de munição na guerra de narrativas entre bolsonaristas e petistas. Até porque o índice é menor do que gostariam as empresas brasileiras, maior do que aceitam as plataformas. O tema, agora, tramita pelo Senado.

Há postagens, por exemplo, dizendo que a taxação vai atrapalhar a vida dos miseráveis. Mas vale lembrar que os mais pobres entre os mais pobres não compram de plataformas estrangeiras, mas em feiras ou ruas de comércio popular, em que a roupa, não raro, é vendida por quilo e a produção, nacional.

O debate não é simples e há argumentos de ambos os lados. Infelizmente, uma discussão profunda e técnica foi mais uma vez interditada pela polarização estúpida das redes sociais. Com isso, o país vai deixando a opção por ter um projeto nacional.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL