Leonardo Sakamoto

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Opinião

Câmara avança em gravidez de criança, pau em usuário e defesa de bandido

A Câmara dos Deputados uniu o retrocesso ao oportunismo e avançou com três pautas deletérias para a dignidade humana nesta quarta (12): um que dificulta o aborto legal de crianças e mulheres estupradas após a 22ª semana de gestação, outro que criminaliza o usuário ou dependente de drogas e, claro, o que invalida a delação de presos, o que protege assassinos e golpistas.

De sobra, deu três cacetadas no Supremo Tribunal Federal. E lembrou ao governo Lula que, em temas de comportamentos e costumes, ele tende a perder sempre. O que funciona como pressão tanto para liberação de mais emendas em ano eleitoral quanto para a eleição às presidências do Congresso.

A urgência do projeto que pune como homicídio algumas situações de interrupção de gravidez autorizadas por lei que sejam realizadas após a 22ª semana foi aprovada de forma relâmpago e simbólica. Agora, ele pode ir à votação no plenário. Críticos apontam que isso vai forçar a gravidez de crianças - famílias, não raro, descobrem o estupro e a gestação das filhas após esse período. E muitos médicos se negam a fazer o aborto legal. Detalhe: a punição para a mulher que abortar, com o projeto, fica maior que a do estuprador.

A justificativa é também uma reação ao STF - menos pelo trâmite de uma ação que poderia aumentar os casos em que o aborto legal é permitido (que vai ficar parada por um tempo) e mais pela decisão do ministro Alexandre de Moraes, que atestou ser ilegal uma resolução do Conselho Federal de Medicina (tomado por conservadores) que impedia o aborto após a 22ª semana, mesmo por estupro.

Além disso, a Comissão de Constituição e Justiça aprovou, por 47 votos a 17, o relatório sobre a Proposta de Emenda Constitucional que torna crime portar qualquer quantidade de droga, até uma mísera bituca de maconha. Também é reação ao STF, que analisa a quantidade mínima que diferencia o usuário do traficante - hoje a lei garante essa brecha, jogando para policiais, promotores e juízes a definição. O que tem levado à punição como traficante de pessoas com quantidades ridicularmente pequenas, principalmente negros e pobres devido ao nosso racismo institucional.

Por fim, os deputados federais aprovaram a urgência do projeto que proíbe validação de delações premiadas com presos. Isso impediria, por exemplo, que o Brasil descobrisse os mandantes da execução da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em março de 2018. Os nomes do deputado Chiquinho Brazão, do conselheiro do TCE-RJ, Domingos Brazão, e do ex-comandante da Polícia Civil do Rio, Rivaldo Barbosa, vieram da delação do assassino, Ronnie Lessa - que está preso.

É fundamental garantir que presos não sejam torturados física ou psicologicamente para entregarem o que os algozes desejam, como acontecia sistematicamente na ditadura militar, mas a proposta vai muito além e mata a possiblidade de delação - fundamental para a resolução de casos com mandantes. PCC deve estar feliz.

Aliás, a medida é uma esperança de Jair Bolsonaro ver anulada a delação do seu ex-ajudante de ordens, o tenente-coronel Mauro Cid, que trouxe subsídios para confirmá-lo como o cabeça por trás da intentona golpista entre o final de 2022 e 8 de janeiro de 2023. Também pode criar problemas ao Supremo Tribunal Federal, uma vez que, se aprovada, a corte terá que decidir se o entendimento vale para casos em andamento ou apenas os novos. O que pode ser usado pelo bolsonarismo para criticar uma eventual condenação e prisão do ex-presidente.

À Câmara, compete legislar e a democracia precisa aguentar tudo o que for feito dentro dos limites constitucionais. Mas isso rasga a Constituição, quem não aguenta é a tal dignidade humana. E o pior é que essa derrocada ocorre em um acordo entre o grupo medieval do parlamento, com os mercadores de emendas e a turma do quanto pior, melhor. E o pior ainda nem chegou.

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Espera-se do governo Lula resistência, não justificativas de governabilidade ou fuga por medo do impacto eleitoral.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL