'PL do Estuprador' não é só ruim na índole, é ruim na técnica, diz jurista
O PL do Estuprador ou PL da Gravidez Infantil, como ficou conhecido o projeto de lei número 1904/2024, vai tramitar em regime de urgência na Câmara dos Deputados - o que significa dizer que irá para votação no plenário, sem qualquer debate em qualquer comissão.
Não houve sequer informação clara de que o requerimento de urgência desta matéria estaria em análise. Segundos bastaram para avançar com o retrocesso. A votação relâmpago conduzida pelo presidente Arthur Lira (PP-AL) é a cara da Câmara: descomprometida com o interesse público, debochada e com uma pitada de mutreta.
Não bastasse os evidentes problemas de processo legislativo, o PL do Estuprador é ruim de doer. Ruim na técnica e na índole.
1) O projeto impõe tempo limite para a interrupção da gestação em casos de estupro e risco de vida da gestante, além de propor pena à vítima. Ao fazer isso, ignora completamente os dados: seis em cada dez mulheres estupradas são crianças e 70% é estuprada em casa, por pais, padrastos, tios, avôs. Saber isso faz toda diferença: impor limite temporal para acessar serviço de saúde no caso de estupro é jogar o tempo contra a vítima. Por isso o apelido de PL da Gravidez Infantil.
2) A criança tem que superar, muitas vezes sozinha, o desafio de denunciar o "homem da casa". Além disso, ela custa a ser acreditada. Não bastasse, precisa estar acompanhada de um responsável para acessar o serviço de saúde, torcendo para que uma turba de fanáticos não impeça seu acesso ao hospital. Precisa ainda contar com um profissional de saúde que não desonre a profissão e resolva colocar empecilhos descabidos: fazê-la ouvir ultrassom, registro de B.O., autorização do estuprador.
Se o médico colocar empecilhos ilegais, a criança ainda vai precisar contar com um promotor que não use o cargo para impor suas convicções acima da lei e com um juiz que não pense ser o bispo. Por isso a demora em conseguir acesso a um serviço de aborto legal. Por isso os fanáticos querem ter poder sobre o tempo.
3) Como se já não fosse suficiente, a ruindade moral do projeto, há um requinte de crueldade na pena prevista para a vítima de estupro que interromper a gestação acima do prazo estipulado: bem maior que a do estuprador. Por isso a alcunha de PL do Estuprador. O relator do projeto disse que é tudo para testar os compromissos de Lula com a bancada evangélica. Usa a dor de crianças como uma barganha barata.
4) Barata não, cara. Pois é sobre misoginia, é sobre perversidade (parte dessa turma tem como heróis um coronel estuprador), mas é também sobre dinheiro, sobre muito dinheiro. A moeda de troca por mais emendas parlamentares e pelo controle do orçamento em ano eleitoral é a dignidade de crianças. Não honram as calças que usam, compradas com os penduricalhos que pagamos.
Desprendido da realidade, da Constituição e do interesse público, um Legislativo que pensa apenas na própria sobrevivência a custa da dor de crianças, não merece respeito, nem deferência, nem reeleição.