Leonardo Sakamoto

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Opinião

Golpismo na Bolívia pede para Brasil não esquecer seus militares golpistas

A tentativa fracassada de golpe ou quartelada na Bolívia por militares incapazes de viver sob as balizas de um governo civil democraticamente eleito lembra que nossa América Latina segue terreno fértil para insurreições de bandidos que querem se esconder atrás de fardas verde-oliva. E mostra que o discurso usado por eles não encontra fronteiras, vale para La Paz ou para Brasília.

Comandados pelo general Juan José Zúñiga, que havia sido destituído de seu cargo ontem, militares tomaram a região do palácio presidencial e chegaram a invadir o prédio nesta quarta (26). Brandem um discurso bizarro de tutela das instituições. Imagens de tropas e blindados circulam nas redes. O presidente Luis Arce ordenou que as tropas se desmobilizem. O ex-presidente Evo Morales falou de um golpe de estado em gestação e convocou uma "mobilização nacional pela democracia".

Por mais que eles voltem às casernas, não dá para dizer que isso deu em nada. O que houve foi um espancamento da Constituição boliviana por quem deveria proteger a pátria.

Zúñiga foi removido do cargo por Arce após se meter na política nacional com ameaças contra Evo. Como qualquer golpista chinfrim, ele usou a justificativa de defesa da democracia para atacá-la: "não permitirei que pisoteie a Constituição, que desobedeça ao mandato do povo".

"Parem de destruir o país, parem de empobrecer o país, parem de humilhar o Exército", afirmou. E dizendo que "as Forças Armadas são o braço armado do povo, o braço armado da pátria", coloca-se ele próprio como guardião dos interesses do povo - que, em sua visão, se confundem com os dele próprio.

O general golpista prometeu libertar a ex-presidente Jeanine Añez, condenada por organizar um golpe de estado em 2019, entre outros golpistas condenados na justiça, que os militares agora chamam de "presos políticos". Ele foi preso, na noite desta quarta, por ordem da Procuradoria-Geral da Bolívia.

As ameaças são semelhantes àquelas vociferadas durante anos por um certo ex-capitão indisciplinado que se tornou presidente, fomentando a suspeita sobre as instituições, colocando-se como mediador da vontade popular e como líder incondicional das Forças Armadas. Não à toa, ele usava sempre o exemplo de Añez para exemplificar o que poderia acontecer com ele e seu grupo.

O plano golpista de Bolsonaro contou com generais como Braga Netto, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira, Estevam Theophilo, com o almirante Garnier, e um rosário de oficiais. Tratar esses oficiais do alto escalão militar como um grupelho assanhado é jogar a realidade para baixo do tapete. O golpismo é entranhado nas Forças Armadas porque nunca foi devidamente dissuadido.

A despeito de militares que tenham resistido aos ímpetos golpistas dos colegas, seja por amor à democracia ou por medo das consequências, há uma dúvida que deveria afligir mais a jovem república brasileira: se a oportunidade que estivesse diante da cúpula das Forças Armadas não fosse a conspiração tosca de Jair, mas algo mais bem costurado, com apoio internacional (imagine se Donald Trump tivesse sido reeleito) e respaldo de setores importantes aqui dentro, ela entraria de cabeça no golpe?

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Bolsonaro atacou as urnas eletrônicas com a ajuda dos militares ao longo de anos. E, em novembro de 2022, os comandantes das três forças soltaram uma nota com uma falácia absurda, apontando que o fato de não terem encontrado problemas nas urnas não significava que eles não existiam.

O acampamento golpista em frente ao QG do Exército também serviu de cabeça-de-ponte para o ataque à sede da Polícia Federal e a queima de carros e ônibus no dia 12 de dezembro e o planejamento da bomba colocada em um caminhão de combustível a fim de explodir o aeroporto de Brasília na véspera de Natal, além do próprio 8 de janeiro.

Para além da tramoia que levou ao 8 de janeiro, fardados continuaram agindo mesmo após a intentona. O Exército impediu a entrada da Polícia Militar no acampamento golpista em frente ao seu quartel-general, em Brasília, naquela noite. Imagens de dois blindados deslocados para mostrar que o comando falava sério chocaram muita gente que apostava que a ditadura militar havia terminado em 1985. Com isso, muitos bolsonaristas tiveram tempo de fugir.

Como explicar que a nossa força terrestre foi guarda-costas de golpistas? A quem a sua "mão amiga" e o seu "braço forte" estavam protegendo?

Este seria o momento de promover mudanças legislativas no Brasil para garantir que militares fardados fiquem na caserna, deixando a política para civis, como tramita no Congresso Nacional. Mas não só: o ideal seria revisar a legislação para impedir a distorção da Constituição por extremistas que acreditam na mentira do tal poder moderador.

E punir com anos de cadeia os militares que conspiraram contra a democracia. Perdemos a chance quanto a 1964, que o erro não se repita sobre 2022 e 2023.

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Apesar de ter uma democracia mais frágil que a nossa, o golpismo na Bolívia lembra que o naco criminoso dos militares segue à espreita. Esperando uma chance.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL