Leonardo Sakamoto

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Reportagem

Governo Tarcísio tenta driblar STF ao prometer tecnologia que ainda não tem

Apesar de o governo Tarcísio de Freitas afirmar ao Supremo Tribunal Federal que as novas câmeras para fardas policiais podem vir a ser acionadas automaticamente em caso de ocorrências, uma análise encomendada pela Defensoria Pública de São Paulo aponta que o edital do Estado de São Paulo e a proposta vencedora da Motorola Solutions não preveem isso.

Após ser questionado pelo presidente do STF, Luís Roberto Barroso, sobre o sistema adotado pelas novas câmeras, o governo paulista enviou o ofício GAB SEC 167/2024, tratando da possibilidade de acionamento automático em algumas situações. Como a proximidade com a ocorrência através de georreferenciamento, por exemplo.

O problema é que, segundo a Defensoria Pública, as possibilidades de acionamento automático não estão previstas no contrato. Ou seja, São Paulo vendeu ao STF algo que ainda não tem.

A resposta do governo a Barroso foi dada em meio a uma ação sob responsabilidade da defensora pública Fernanda Balera que alertou para a perda da capacidade de fiscalização dos agentes de segurança com a troca dos equipamentos que gravam de forma ininterrupta por aqueles que precisam ser ligados diretamente pelos policiais ou pela central. A substituição ocorre por decisão de Tarcísio de Freitas e do secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite.

"Os documentos que guiaram o processo de contratação do novo serviço de câmeras corporais da Polícia Militar do Estado de São Paulo não preveem o acionamento automático da gravação no momento de sua implementação", afirma conclusão da nota técnica apresentada pela Defensoria e produzida pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.

"Caso a corporação opte por incluir essa funcionalidade em seu sistema de câmeras, serão necessárias adaptações ao serviço contratado. Ainda assim, mesmo com aditivos no contrato, algumas formas de acionamento automático podem não ser viáveis devido às limitações da infraestrutura de comunicação do estado de São Paulo."

Diante das novas informações anexadas pela Defensoria Pública à ação, Barroso exigiu, nesta segunda (9), "a manutenção do modelo de câmeras de gravação ininterrupta até que seja comprovada, com base em evidências, a viabilidade técnica e a efetividade operacional dos métodos de acionamento das novas câmeras".

Em sua decisão, ele afirma que "embora o teste tenha sido reportado como bem-sucedido, manifestação mais recente revela que a solução tecnológica ainda não está desenvolvida". E "apesar das inovações, como o acionamento por proximidade via tecnologia Bluetooth e a integração com o sistema de despacho de ocorrência, tais funcionalidades não abrangem o mínimo necessário para o acionamento remoto automático".

De acordo com o presidente do STF, "não estão contempladas as situações de acionamento em razão da detecção de estampidos de tiros, movimentos bruscos e o reacionamento após desativação".

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Sobre o acionamento por geolocalização, em que uma câmera ativaria os equipamentos dos policiais que estivessem perto, Barroso diz que " a solução descrita nos autos pressupõe o acionamento manual da primeira câmera para que as demais sejam acionadas - ou seja, não é integralmente automático".

Destaca também que "a própria manifestação do Estado de São Paulo reconhece a necessidade de mais tempo para avaliação técnica dessas funções e admite os riscos de falhas operacionais".

E que "apesar de ter sido afirmado expressamente que a 'Diretoria de Tecnologia da Informação e Comunicação está trabalhando com a contratada no desenvolvimento e funcionamento da ferramenta de acionamento remoto (intencional e automático)', essa atividade não consta do cronograma". Avalia que apenas após 10 de dezembro, quando estão previstos mais testes, é que poderiam ser entregues relatórios ao STF sobre o acionamento automático.

Para Barroso, "diante da ausência de demonstração da viabilidade técnica e operacional dos novos dispositivos e do significativo aumento da letalidade policial em 2024, é indispensável manter o modelo atual de gravação ininterrupta, sob pena de violação à vedação constitucional ao retrocesso e descumprimento do dever estatal de proteção de direitos fundamentais, em especial o direito à vida".

PM jogando gente da ponte e executando com 11 tiros nas costas

A avaliação de quem acompanha o processo de perto é que essa tentativa de drible irritou o STF.

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Ainda mais em um momento em que casos de violência perpetrada por policiais militares de São Paulo ganharam o noticiário internacional, como o rapaz jogado de uma ponte em uma blitz, o homem negro que foi morto com 11 tiros nas costas ao roubar sabão, o sangue tirado de uma senhora idosa que tentava proteger seu filho, a execução de um estudante de medicina à queima-roupa em um bairro nobre da capital e a morte de Ryan, de 4 anos, enquanto brincava em frente à sua casa em Santos.

Após os casos de violência mais recentes virem a público, o governador Tarcísio de Freitas afirmou que estava errado em suas críticas às câmeras corporais em policiais, mas não disse que abandonaria a mudança de gravação ininterrupta para gravação ativada.

"Eu admito, estava errado. Eu me enganei, e não tem nenhum problema eu chegar aqui e dizer para vocês que eu me enganei, que eu estava errado, que tinha uma visão equivocada sobre a importância das câmeras", disse Tarcísio.

Hoje as câmeras registram as imagens sem parar (com exceção do momento em que o policial vai ao banheiro ou faz refeições) e foram compradas durante o governo João Doria. A alteração foi duramente criticada por especialistas em segurança pública, pois pode dificultar a gravação de ocorrências policiais e a produção de provas.

O valor mensal do contrato do governo de São Paulo com a Motorola é de R$ 4,3 milhões, com total de R$ 105 milhões por 30 meses. Como a decisão de Barroso exige a continuidade do uso da tecnologia de gravação ininterrupta, que não era previsto no edital da licitação vencida pela empresa, não se sabe o que a gestão Tarcísio vai fazer.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.