Mortes em Tremembé também são fruto do discurso de que o MST merece bala
Um grupo armado invadiu o assentamento Olga Benário, em Tremembé (SP), e executou duas pessoas e deixou outras feridas na noite desta sexta (10). Um deles era Valdir do Nascimento, militante histórico do MST, referência na luta contra a ocupação irregular de lotes da reforma agrária.
Uma investigação vai mostrar se o motivo foi vingança ou cobiça por terras, mas uma certeza é clara: isso também é fruto de uma narrativa criminosa muito difundida por parte de proprietários rurais e políticos extremistas: de que é justo que este e outros movimentos de luta pela terra sejam tratados à base de balas.
Conheço bem e já estive várias vezes no Olga Benário, que está regularizado pelo governo e existe há mais de duas décadas. O benefício de um assentamento próximo a uma grande cidade é que ele tem acesso direto ao mercado consumidor, sem custos de deslocamento dos produtos, além de as famílias poderem contar com serviços públicos da zona urbana. A parte ruim é que desperta o desejo de muita gente, de olho na terra, entre milicianos, traficantes e a especulação imobiliária.
João Paulo Rodrigues, coordenador nacional do MST, contou à coluna que houve tentativas de terceiros de ocupar, de forma irregular, um lote que ficou vago em Tremembé. Como os assentados não deixaram isso acontecer, a pessoa se retirou, jurou vingança e trouxe um exército armado.
"Nós temos essa situação no país inteiro. É necessária uma ação muito enérgica por parte do Incra e da Polícia Federal para regularizar lotes vagos, seja por terem sido abandonados ou irregularmente vendidos", afirma.
Paulo Teixeira, ministro do Desenvolvimento Social e Agrário, afirmou à coluna que o governo e o Incra vêm atuando sobre isso e que a questão do lote que estava vago no assentamento havia sido resolvido após um mutirão de análise de casos no final do ano.
"O presidente Lula deixou claro que ataques como esse a assentamentos serão investigados pela Polícia Federal", afirmou. O Ministério da Justiça já mandou a PF entrar no caso. A certeza de envolvimento de agentes federais pode funcionar como fator dissuasório.
Mas se, por um lado, há um motivo que levou ao crime, por outro, existe um ambiente que movimentos sociais pela reforma agrária foram criminalizados por anos, por produtores rurais e políticos. Não raro com a ajuda da própria imprensa, que cobriu de forma acrítica a questão fundiária, para dizer o mínimo.
Isso cria distorções na realidade. Há grupos de garimpeiros, madeireiros e pecuaristas ilegais, além de grileiros e outros que agem ao arrepio da lei, que são responsáveis por roubo de terras públicas e assassinato de indígenas, trabalhadores rurais e camponeses no interior do Brasil. Mas as ocupações de terra do MST é que levaram à instalação de uma CPI pela Câmara dos Deputados, a última em 2023. Representação política é tudo.
Mas analisemos quem são os responsáveis pela violência. Desde a sua fundação, o Brasil semeia o campo com sangue, quase sempre de trabalhadores pobres e populações tradicionais, expulsas de suas terras, superexploradas ou escravizadas — ou alguém lembra o nome de algum bilionário que foi morto ao tentar fugir de uma fazenda de gado no Pará?
Os otimistas imaginavam que, com a redemocratização, a situação iria mudar, ignorando que a dinâmica do poder não havia se alterado. E que uma parcela do agronegócio e seus resolveu permanecer com os pés fincados no passado. Tivemos mortes em série. Dos massacres dos Yanomami (1993), de Corumbiara (1995) e de Eldorado dos Carajás (1996) até os de Pau D'Arco e Colniza (2017), muitos com a participação de agente públicos matando em nome de gente poderosa que ocupava a terra irregularmente.
Tentando frear a ação de madeireiros em suas terras, 50 indígenas Guajajara foram assassinados no Maranhão entre 2003 e 2021, segundo o Conselho Indigenista Missionário, ligado à Igreja Católica. E as 570 mortes de crianças Yanomami até cinco anos, levantadas pelo portal Sumaúma, não teriam acontecido se os garimpeiros não invadissem seu território.
Representantes políticos do agronegócio no Congresso Nacional defendem regras frouxas para demarcar territórios indígenas, suprimir ainda mais a proteção ambiental, "flexibilizar" a implantação de grandes empreendimentos, dar uma banana à inspeção do trabalho, enterrar a reforma agrária, criminalizar movimentos sociais. Eles podem não ser os que apertam o gatilho. Mas a narrativa que empunham é responsável por fazer com que essa violência seja vista como uma necessária "limpeza" em nome do "progresso".
Desde a ditadura, somos obrigados a ouvir discursos que a vida de algumas centenas de famílias camponesas, ribeirinhas, quilombolas, indígenas ou de trabalhadores rurais não pode se sobrepujar ao "crescimento econômico". Discursos que taxam de "sabotagem sob influência estrangeira" a atuação de movimentos e entidades que atuam para que o "progresso" não trague o país.
Se a situação já era historicamente ruim, entre 2019 e 2022, tivemos um governo federal que escalou a retórica contra os movimentos pela reforma agrária. Na prática, deu um salvo-conduto a quem atentasse contra a vida deles e, ainda por cima, facilitou o acesso a armas.
Agora, colhemos os frutos disso. Quer dizer, os corpos.