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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quênia aposentou urna eletrônica e vive polêmica sobre fraude no papel

Ato bolsonarista na Avenida Paulista teve ataques à urna eletrônica - Ronny Santos/Folhapress
Ato bolsonarista na Avenida Paulista teve ataques à urna eletrônica Imagem: Ronny Santos/Folhapress

Colunista do UOL

15/07/2022 04h00

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A discussão exaustiva e quase ridícula que temos hoje sobre urnas eletrônicas às vezes é comparada com outra que teve lugar no Congresso Nacional há alguns anos. São duas conversas muito diferentes.

A briga de faca no escuro levada adiante em redes sociais não tem relação com a parte técnica do sistema de votação, mas com criar a qualquer custo um questionamento sobre a credibilidade dele. Não é pouca coisa. Disso depende a estabilidade institucional.

Anos atrás, tivemos questionamentos completamente diferentes. À medida que a tecnologia evolui, os sistemas de informática acabam ficando mais vulneráveis. É natural. Não existe sistema perfeito.

Cientistas e técnicos sérios apontaram questões que precisavam ser endereçadas. Congressistas experientes de diversos matizes ideológicos ouviram esses técnicos e tentaram vislumbrar passos em direção a novas soluções.

O Tribunal Superior Eleitoral em parte colaborou e em parte teve uma postura arrogante. A preocupação em dizer que o sistema era seguro acima de todas as coisas levou a uma ruptura do diálogo com gente séria e bem-intencionada.

Ocorre que os ventos da opinião pública mudaram e entramos nessa ciranda ensandecida de redes sociais, fake news e manipulação da realidade. Uma discussão delicada acabou sequestrada pela brutalidade.

Vivemos agora um imbróglio de declarações políticas inflamadas turbinadas por influencers que dominam a economia da atenção. Provocam medo e ódio, recebem de volta engajamento, que significa influência e dinheiro.

Havia uma proposta no Congresso Nacional que propunha um sistema com uma impressora blindada. A pessoa veria a impressão do próprio voto mas não teria acesso ao papel, que ficaria à disposição da Justiça Eleitoral. Isso ganhou fama, mas não foi implementado.

Nesse ecossistema das redes, surge a verdade absoluta de que o voto em papel com contagem pública seria a panaceia. Assim ficaríamos livres de fraudes. A urna eletrônica surgiu justamente para superar as fraudes comuns deste sistema.

O sistema de votação pouco importa se for eficiente a máquina para criar dúvidas sobre ele. É o que mostra a experiência de outros países em desenvolvimento que enfrentam questões semelhantes. De um lado as urnas, de outro as redes sociais e a desinformação.

O Quênia foi um dos pioneiros do continente africano na identificação biométrica e nas eleições eletrônicas. Em 2013, o movimento levou o país a ser intitulado a "Sillicon Savannah", que foi capaz de atrair um enorme número de startups de tecnologia.

Faltava infraestrutura, como eletricidade. Em muitas localidades, as urnas eletrônicas tiveram de ser substituídas por papel. Houve filas de até nove horas sob o sol escaldante. Ainda houve mais uma tentativa em 2017.

O fracasso acabou tendo impacto nos planos de Gana, Namíbia, Zimbábue, Botsuana e Nigéria. Eram países que também pretendiam implementar um sistema completamente eletrônico de identificação de eleitores e votação.

Em agosto, haverá eleições no Quênia. A Comissão Independente Eleitoral e de Limites (IEBC), órgão formado para resolver a confusão, optou por votação inteiramente feita em papel este ano.

Uma empresa grega foi contratada para imprimir as cédulas eleitorais, que são controladas e seriadas. O trabalho foi feito em Dubai. O primeiro carregamento chegou a Nairóbi há uma semana. Já há dúvidas sobre a credibilidade da empresa e do processo.

A IEBC agora ameaça suspender a eleição em 31 províncias devido a casos judiciais pendentes que podem causar fraude eleitoral. O mais famoso é o de Johnson Sakaja, candidato a governador da província de Nairóbi.

O nome dele não consta da cédula porque há alegações de que apresentou um diploma universitário falso da Team University, de Uganda.

O problema não é o sistema de votação, é a corrosão da credibilidade das instituições. Uma vez que ela se instala, é possível criar dúvidas sobre qualquer sistema de votação. Existindo essa dúvida, a fundação do poder é substituída por areia movediça.

Enquanto prestamos atenção em detalhes e mentiras sobre sistemas que desconhecemos, a confiança nas instituições é minada. O desafio real é este. Precisamos garantir que as pessoas confiem no processo decisório, qualquer que seja ele.