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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Jornal Nacional ganha o jogo, mas escolhe tabuleiro que favorece Bolsonaro

Colunista do UOL

23/08/2022 11h30Atualizada em 23/08/2022 20h01

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Só tem um jeito de o resultado do Jornal Nacional ser melhor para o presidente Jair Bolsonaro: se Lula e Ciro Gomes não rivalizarem com os entrevistadores.

Houve uma mudança muito positiva no formato das entrevistas de 2018 para cá. E não há um único questionamento sobre o conteúdo e a verificação de fatos feita por William Bonner e Renata Vasconcellos. Foram irretocáveis.

Em todos os temas debatidos, eles apresentaram dados, foram firmes mas compostos e tentaram ouvir o presidente. Não há dúvida de que ganharam no conteúdo. Perderam é no contexto, ao escolher o tabuleiro errado de jogo e o tom professoral.

Arrogância é bicho que come o dono. Talvez eu passe a repetir isso em todos os textos para compartilhar a mudança que foi para eu entender meu tom arrogante de jornalista.

Quem tem 30 anos de carreira foi treinado em outro contexto, numa lógica em que as autoridades se sobrepunham ao povo e o jornalismo era a voz das pessoas.

Precisávamos aprender a confrontar gente poderosa cara a cara, coisa fácil na bravata e difícil na prática. É um treinamento que nos molda mas precisa ser revisto na era dos populismos reacionários.

Um populista trabalha para fazer uma conexão direta com o que chama de "povo". Ele é a única voz possível para fazer valer os interesses do "povo" contra as elites ou o "establishment", que obviamente ele jamais definirá direito de que se trata.

Se for reacionário, essa imagem será construída a partir das reações que propõe contra as elites e das reações das elites à sua atuação. Vivemos a mágica do poderoso que se vende como oprimido e o pessoal compra.

Jair Bolsonaro como governante é como um trem descarrilando. Como populista, conseguiu o que queria, se humanizar para uma audiência muito maior que sua bolha de paquitas políticas.

Da mesma forma que é possível construir "Fake News" usando só verdades também é possível ganhar um debate usando só mentiras. Depende do objetivo final.

A escolha dos temas foi o que mais favoreceu Jair Bolsonaro, centrada em questões que importam aos ricos e à classe média que já o rejeitam: democracia, corrupção e meio ambiente.

O calcanhar de Aquiles do presidente é sua realidade. Somos o maior produtor de proteína bovina do mundo e os mercados estão botando alarme na carne, as pessoas estão na fila do osso de boi e inventaram compostos de resto de soro de leite para vender.

A maioria dos municípios tem mais gente vivendo de auxílio do governo do que de emprego. Quase metade da população brasileira está endividada. O auxílio de R$ 600 não faz uma compra de mês
que preste devido à política econômica do governo.

Estamos batendo recorde de pessoas endividadas, a maioria da população. Enquanto isso, 75% das famílias continuam gastando mais do que ganham porque o dinheiro não sobra, segundo apontou a pesquisa "Empréstimos pessoais e hábitos dos brasileiros", encomendada pela Globo.

A liberação de armas tornou as periferias muito mais violentas nas relações intrafamiliares e sociais, criando um problema que o aparato policial não tem como resolver.

Os brasileiros não estão dormindo por causa desses problemas. E daí a primeira pergunta é sobre urna eletrônica.

O tom e o contexto são tão importantes quanto o conteúdo e não foram cuidados. Há um ponto específico que eu aprendi no livro "A Eleição Disruptiva - Por Que Bolsonaro Venceu", de Mauricio Moura e Juliano Corbellini. É de 2019, reli esta semana.

Temos um vício de não levar a sério pessoas que consideramos intelectualmente inferiores e então passar a levar ao pé da letra tudo o que elas dizem. É o que ocorreu no diálogo sobre "virar jacaré" ao tomar vacina.

Renata Vasconcellos tem toda a razão ao colocar que um chefe de Estado e de Governo jamais poderia falar assim. Mas, ao falar naquele tom contido, perguntando seriamente se era em sentido figurado, acabou se perdendo.

Dali em diante, Jair Bolsonaro se humaniza e mente sem sentir dor porque foi tratado pela "elite" do mesmo jeito que ela trata seus empregados, os pobres, evangélicos e iletrados, simplificando intelectualmente e ridicularizando.

No final, é ele quem fala do que interessa sobre economia ao povo em seu minuto final. Os jornalistas ficam perdidos tentando desmentir o caminhão de lorotas ao vivo. Não é fácil, mas precisamos aprender como vencer debates contra valentões de recreio.