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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Um Brasil que transforma data cívica em cat fight de primeira-dama

Jair Bolsonaro e a esposa, Michelle, se beijam durante comemoração do 7 de Setembro em Brasília - Edu Andrade/Fatopress/Estadão Conteúdo
Jair Bolsonaro e a esposa, Michelle, se beijam durante comemoração do 7 de Setembro em Brasília Imagem: Edu Andrade/Fatopress/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

07/09/2022 13h52

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Dividir para governar é uma das frases políticas mais antigas. O assustador da tomada política do bicentenário da Independência é ter sido possível.

Só um país que não se ama, fraturado e com o tecido social esgarçado permite que uma data tão importante seja transformada nessa comédia do Leslie Nielsen que presenciamos.

Não temos um projeto de Brasil e não nos reconhecemos como brasileiros. Importamos de forma acrítica as teorias de esquerda e direita construídas nos Estados Unidos e Europa, traduzidas pelos gurus da moda. Deu no que deu, a negação de quem somos.

Aliás, não somos mais nada além de uma divisão grotesca do bem contra o mal em que cada um de nós representa o bem. O sentimento de brasilidade anda sufocado.

Nesse contexto, datas cívicas perdem o sentido e acabam sequestradas pelo primeiro aventureiro. Nós não sabemos o que deveria ser o bicentenário da Independência, não almejamos nada. Jair Bolsonaro entregou o que lhe convinha, um comício.

É uma data importantíssima para a consciência cívica, para as futuras gerações e para a nossa história. Ali deveriam estar representantes dos Três Poderes, os ex-presidentes, grandes figuras do nosso país, atletas medalhistas, cientistas premiados, artistas que levam a cultura brasileira ao mundo todo. Estavam Silas Malafaia e Luciano Hang.

O Brasil que realmente somos e que nos orgulha não fez falta a uma claque que crê viver uma guerra contra o comunismo, o aborto e a identidade de gênero.

Quando eu vi o presidente puxar um coro de "imbrochável" para si mesmo, a multidão aderir e ainda aplaudir, vi que ali o pessoal está disposto a tudo mesmo. Eu achei excessiva a idolatria ao coração de Dom Pedro, mas de tédio a gente não morre.

Se nós tivéssemos sido educados para o patriotismo, aquela multidão jamais permitiria que a data virasse uma ode ao órgão sexual do presidente e um cat fight de primeiras-damas. Ocorre que não somos patriotas.

O repúdio à excrescência não veio acompanhado de uma demanda pelo que é devido ao Brasil e aos brasileiros na comemoração. O pessoal prefere tirar sarro de paraquedistas. Depois vai lá xingar o presidente, a primeira-dama de louca e os próprios compatriotas.

Isso não combate a esculhambação de transformar o Sete de Setembro em Bolsonaro Day, reforça. Combater seria exigir o correto e defender o civismo. Reagir aumentando o esgarçamento do tecido social é campanha para Bolsonaro.

O presidente sabe disso e chegou assim à presidência. É por isso que veio com essa conversa de princesa para Michelle Bolsonaro e a maldosa comparação velada com Janja.

Ele conta com o toque de Midas ao contrário dos Che Guevara de apartamento. Como aprendemos com o Chile, basta o progressismo gourmet botar a mão em algo para virar cinzas.

O problema principal da fala é que não cabe numa data cívica, é antipatriota e rebaixa uma comemoração nacional a comício eleitoral. É maliciosa ao mirar no Judiciário, inflamando a população caso alguma atitude seja tomada.

Mas ele conta que os inteligentinhos começarão a implicar com o "princesa", dizendo que é machista ou misógino. "Ah, mas não pode apontar a misoginia?", me perguntam. Claro que sim. Pode tranquilamente coar o cisco e deixar passar o camelo, arcando com as consequências.

Jair Bolsonaro mira nas mulheres de classe C e religiosas com o conceito de que ter uma família é importante para a construção do caráter dos homens. E falou, muito espertamente, que Michelle não está ao lado, está na frente dele.

Essa parte do discurso será reverberada de forma poderosa para apontar o machismo na palavra princesa. Mas a população vai ouvir ali a defesa da família, do poder das mulheres e da formalização de relacionamentos amorosos.

A primeira vez que eu ouvi esse discurso foi de Mano Brown, que participou de um programa que fizemos no STF com meninos do sistema de ressocialização de adolescentes. Ele aconselhava a formar família e ajudar a mãe para andar na linha.

Não é partidário falar de família como esteio moral nem é visto como ofensivo pela maioria chamar mulheres de princesas. No parque de areia antialérgica da sociedade, as duas coisas são ofensas. É um pessoal que luta muito para parecer lutador.

Eles vão gritar e obviamente vão conseguir mais uma vez o ranço da população em geral, que rende implicância com Lula e humanização de Bolsonaro. Se isso mudará votos com os alimentos pela hora da morte, são outros quinhentos.