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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Fantasia armamentista e patrulhamento político vieram para ficar

Fuzil de assalto Kalashnikov AK-47 - Getty Images
Fuzil de assalto Kalashnikov AK-47 Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

27/10/2022 15h01

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O caos político em que nos metemos é como um acidente de avião. Não ocorre por um erro ou por culpa de alguém. É só com uma sequência consistente de erros que chegamos a esse ponto.

A apoteose da superficialidade em que vivemos impede qualquer tipo de debate e principalmente aqueles mais importantes para a sociedade. Partimos de uma discussão sobre direito de defesa e porte de arma para uma fantasia armamentista doentia.

O ocorrido com Roberto Jefferson é exagerado até para filme B. Infelizmente não é um caso isolado. Ele tinha fuzil e granada em casa. Quem compra esse tipo de coisa? Infelizmente, muita gente.

A reportagem do UOL revelou hoje que 7651 licenças de fuzis do mesmo tipo, calibre 5.56mm, foram emitidas no país durante o mandato do atual presidente. É mais que o dobro das licenças emitidas nos três governos anteriores.

Estamos falando de algo destinado a um público seleto, que tem dinheiro sobrando. É uma arma que custa pelo menos R$ 25 mil, sem contar com as munições e os trâmites para obter a licença do Exército para a compra.

Aqui estamos no mercado de luxo, no objeto de desejo, já saímos muito da discussão sobre direito ao porte de arma e autodefesa. O presidente Jair Bolsonaro e o bolsonarismo têm um discurso de apologia às armas.

Ele só funciona tão bem porque quem o contrapõe se recusa a ouvir, trata a questão com superficialidade arrogante e moralismo. Ignorar dores reais e reclamos de uma parte da sociedade é o que abre o flanco para que esse tipo de fantasia ganhe corpo.

Na questão de armas, há duas discussões legítimas. A primeira é a do liberalismo, o questionamento sobre o Estado ter ou não monopólio da violência. A outra é o direito à autodefesa.

Durante muito tempo fomos capazes de fazer esse debate, mesmo que seja um assunto quente e de opiniões apaixonadas. Não somos mais. Aliás, não somos mais capazes de fazer quase nenhum debate.

Na apoteose da superficialidade, quem debate tirar do Estado o monopólio da violência é fascista. Quem defende o direito à autodefesa é fascista também. Dizer isso dá ao Che Guevara de apartamento a oportunidade de matar Mussolini a tuitada, maior emoção que ele terá na vida.

As pessoas mais inseguras acabam se sentindo ameaçadas diante desse comportamento, cada vez mais comum. Insegurança e reações violentas andam lado a lado em todo o reino mamífero.

Criamos um batalhão de presas fáceis para charlatães violentos. Eles pregam uma guerra pela liberdade conduzida pelo cidadão de bem que não sabe nem montar um gaveteiro.

Roberto Jefferson virou um herói em grupos extremistas de Telegram, mostrou ontem outra reportagem do UOL. É uma tragédia humana. São pessoas que têm muito medo de algo e realmente a ilusão de que são capazes de se defender armadas dessa monstruosidade.

O problema é o estrago que essa multidão insegura armada pode fazer enquanto tenta lidar com seus demônios e vazios existenciais. Felizmente, os argumentos desse grupo são combatidos com ferocidade pela mídia e pelas autoridades. O estrago seria muito maior se a fantasia armamentista fosse levada a sério.

Esse grupo também faz patrulhamento político. Experimente condenar o que fez o Roberto Jefferson, reclamar da permissividade na concessão de licenças para armas ou defender a volta do rastreio de munições pelo Exército. Choverão patrulheiros da "liberdade" com seus xingamentos.

A única diferença entre eles e seus antagonistas, os patrulheiros da "democracia", é que esses últimos são levados a sério. Gente que age da maneira mais autoritária e abjeta patrulhando as opiniões alheias é aceita socialmente como se fosse defensora da democracia.

São grupos que se retroalimentam e, aparentemente, vieram para ficar. Quem quer que ganhe as eleições no próximo domingo terá uma tarefa árdua para pacificar o país. Ou, quem sabe, surfar mais ainda nessa onda de medo e agressividade.