Pagamos para que o crime compense nas Forças Armadas
A reportagem do UOL Prime de hoje é um resumo triste da cena pública brasileira, em que a distorção vira regra e pagamos para que o crime compense nas Forças Armadas. O estarrecedor é que falamos de um estado de coisas, não de uma decisão tomada ontem. Famílias de militares expulsos recebem pensão como se eles tivessem morrido, mesmo que estejam vivos.
Por meio da Lei de Acesso à Informação, o UOL e a Agência Fique Sabendo descobriram que só no ano passado pagamos R$ 23 milhões em pensões desse tipo na Marinha e Aeronáutica. O Exército, que concentra a maioria delas, não revelou os valores ainda.
A forma como isso acontece é um exemplo do "jeitinho brasileiro". Em 1960, Juscelino Kubitschek promulgou uma lei garantindo o pagamento de pensão às famílias dos expulsos das Forças Armadas. Não é automático, eles precisam ser declarados mortos pela força, mesmo que estejam vivos.
Parece loucura, mas não é. Há casos em que militares desaparecem e não há a comprovação da morte. Se falamos de Forças Armadas, é de se assumir que a situação possa ocorrer até em combate, embora a gente não tenha entrado em guerra faz um bom tempo. Eles são declarados mortos para garantir o direito da família à pensão. Faz sentido, principalmente nesse tipo de profissão.
O salto interpretativo é digno de medalha olímpica. Quando alguém sabidamente vivo é expulso das Forças Armadas porque fez algo errado, pode ser declarado "morto ficto". Ganha o mesmo status legal de alguém morto numa guerra, por exemplo. Não faz nenhum sentido e premia a criminalidade.
Aqui temos duas discussões que correm em paralelo. Uma delas é a do direito à contribuição previdenciária. Ele deve ou não cessar diante da expulsão? A outra questão é da hierarquia e disciplina. Devemos permitir medidas que possam premiar quem quebra as regras das Forças Armadas? São debates indissociáveis.
O militar recolhe mensalmente um percentual do salário destinado especificamente a custear pensões em caso de morte. Pouco importa se ele foi expulso ou não, o dinheiro está lá. Há uma discussão séria sobre o direito a esse valor, que é destinado à família e não ao militar. Se ele foi expulso, a família deve ter a pensão retirada ou não? É uma boa discussão.
Durante 59 anos, as famílias nessa situação recebiam mais do que a contribuição real do militar. Era paga a pensão referente à patente. Suponha que um militar cumpriu toda a carreira de forma honrada, contribuiu a vida toda e morreu. A família dele iria receber o mesmo que a família de um militar que ficou poucos anos e foi expulso por ter cometido, por exemplo, estupro de vulnerável. É uma mensagem eloquente.
Em 2019, esse estado de coisas mudou com a Reforma da Previdência. A pensão paga às famílias passou a ser proporcional ao que o militar efetivamente contribuiu.
A Polícia Militar de São Paulo recolhe contribuição semelhante para a pensão da família. O direito é perdido em caso de expulsão, é como se o vínculo com o Estado fosse cortado a partir dali. Se o policial militar morre numa situação criminosa, seja em serviço ou folga, a família também perde esse direito.
Obviamente há quem entre na Justiça reivindicando o direito aos valores pagos, uma discussão válida. Mas a corporação finca o pé numa prioridade, a de não premiar a criminalidade. Esse é o tema central, o interesse público.
Temos dois direitos em colisão. Um é o da família de alguém expulso de uma força militar por ter cometido crime. O outro é o da sociedade e da própria força militar de punir - ou pelo menos desestimular - a prática de crimes por quem veste uma farda.
Seria uma boa discussão que nem temos, já que o Estado brasileiro assume um lado. Isso tem consequências sobre a formação de gerações de militares. Decidimos fazer a população pagar para que o crime compense.
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