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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O Zen Fascismo e a briga entre mulheres e 'pessoas que menstruam'

Mara Telles - Reprodução/Instagram
Mara Telles Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

23/03/2023 11h27

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Dia desses, a professora da UFMG Mara Telles criticou a expressão "pessoas que menstruam", usada para substituir a palavra mulheres. Foi o início de um assassinato de reputação violentíssimo, que prossegue até agora.

Ela foi denunciada por transfobia pelo Centro Acadêmico das Ciências Sociais. O argumento é que homens trans ficariam excluídos caso essa linguagem não seja utilizada. Utilizando o viés cognitivo do catastrofismo, alunos afirmaram que a fala da professora torna o ambiente do campus inseguro para homens trans.

Conversei com alguns, não sei se representam o todo nem falo por eles. Mas nenhum que eu ouvi reivindica o direito de ser chamado de "pessoa que menstrua".

Estamos diante do fenômeno do "flanelinha de minoria", aquele que finge defender uma causa de uma minoria sem ouvir se aquilo é reivindicação dessas pessoas. É um fenômeno típico da elite urbana brasileira, profundamente classista. Tratar a minoria como menos digna ou incapaz, que não merece nem ser ouvida e precisa ser tutelada, é o mais puro suco da nossa estrutura social.

Nesse caso, fica evidente que o argumento não tem um pingo de seriedade, é apenas uma desculpa para poder atacar em enxame sem sofrer as consequências. Os alunos argumentam que rejeitar ser chamada de "pessoa que menstrua" afeta a segurança de pessoas no campus. Por isso, pedem oficialmente que ela seja exonerada da Universidade.

Vejamos então a análise sobre o que esses alunos falam da professora e o tipo de movimento virtual que lideram e incentivam.

No Twitter, são milhares de frases como:

  • Essa p*ta racista transfóbica merece cometer suicídio na cadeia.
  • Tô ansioso para voltar às aulas (...) pra tocar o terror naquela transfóbica da Wonder Telles.
  • A transfóbica de bosta é apoiada pela simpatizante de nazi. Nada de novo? (A "simpatizante de nazi" citada pelo justiceiro social de teclado sou eu.)

No prédio em que a professora trabalha, o da Fafich, de Ciências Humanas, alguém pichou na parede a frase: "Camburão para essa velha". Depois, ironicamente, riscaram por cima da palavra velha e escreveram entre aspas a palavra "senhora". A UFMG não deu um pio sobre etarismo. Nossas autoridades também não.

Reproduzo aqui apenas um trecho de um grupo de WhatsApp dos alunos da UFMG. São vários e estão frenéticos há dias na estratégia de aniquilação da professora. Dizem ser militância ou defesa dos homens trans, fica bem difícil de acreditar. Duvido muitíssimo que isso seja do interesse dos homens trans contra a discriminação que sofrem:

  • Se eu falar o q tô pensando, eu vou PRESA (4 curtidas)
  • Depois reclamam que a gente fala mal dela para calouros, né?.
  • Juro vei. É dever cívico falar mal dessa transfóbica.
  • Cadê o camburão pra essa veia.
  • É verme demais, pqp

É o triunfo do Zen-fascismo, que não pode ser confundido com militância ou proteção de minorias. A expressão vem de uma música dos Dead Kennedys da década de 1970. Fala de como movimentos "zen" da Califórnia viam os divergentes como inimigos a serem aniquilados, à semelhança do fascismo. (Mais detalhes sobre a expressão aqui.)

Muito pior que o comportamento dos alunos é o silêncio da UFMG diante de algo grave, indecente, perigosíssimo e que pode facilmente sair do controle. Nossos atentos ministros tuiteiros, tão indignados com o vídeo das universitárias etaristas, têm agora diante de si uma tarefa real.

Meninas mais novas tendem a achar inclusiva a expressão "pessoas que menstruam". Mulheres mais velhas, como eu, rejeitam pelo utilitarismo, etarismo e pela semelhança absolutamente infeliz com as piores piadas machistas dos anos 1970 e 1980.

Etarismo e utilitarismo porque evoca aquela ideia arcaica de que a mulher vale enquanto e porque é fértil. Depois disso, vira só uma véia para você zuar à vontade. Muitos homens costumavam, décadas atrás, nos diminuir chamando de cabide de b*ceta. Os incels, radicais misóginos de hoje, nos chamam de depósito (no caso, de esperma). Reduzir a mulher à função reprodutiva não é e nunca foi inclusivo.

Diferentemente da patrulha Zen-fascista, não pretendo impedir ninguém de me chamar de "pessoa que menstrua", de usar essa expressão ou de gostar dela. Da mesma forma que não impeço ninguém de me chamar de véia, sujeita ou vagabunda, outras palavras consideradas adequadas por algumas pessoas para se referir a mim. Não seria minha escolha, mas é a de outras pessoas. São livres.

O que precisamos é compreender a diferença entre avanço de direitos e patrulha de vocabulário. As minorias têm muitas necessidades e reivindicações. Não me consta que elas demandem ver o Zen-fascismo barbarizando seus alvos.