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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Cadê o boicote ao Lollapalooza pela galera que boicotou vinícola?

O Lollapalooza Brasil começou hoje e vai até domingo (26) com shows de Billie Eilish, Lil Nas X, Drake, Rosalía e Twenty One Pilots - Mariana Pekin/UOL
O Lollapalooza Brasil começou hoje e vai até domingo (26) com shows de Billie Eilish, Lil Nas X, Drake, Rosalía e Twenty One Pilots Imagem: Mariana Pekin/UOL

Colunista do UOL

24/03/2023 17h28

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O tempo é o senhor da razão. No dia 2 de março, escrevi uma coluna chamada "Privatização da militância faz acreditar que boicote combate escravidão". Diante do silêncio eloquente sobre o flagrante - o quarto - de trabalho análogo à escravidão no Lollapalooza, fica claro que combater essa chaga social não era e nunca foi prioridade dos nossos guerreiros de teclado.

Cobrados, muitos deles começaram a criar narrativas para justificar a incoerência diante do tema. A mais espetacular, na minha opinião, é a de que boicotar as vinícolas é eficaz para combater escravidão porque elas não venderiam mais os produtos. Boicotar o Lollapalooza não funcionaria porque os ingressos já estão vendidos.

É um raciocínio com a complexidade de uma propaganda do Dollynho. Pelo menos deixa claras a régua moral e o senso exagerado de importância das elites urbanas que usam o vocabulário da militância para entretenimento.

Não somos fortes nem significativos o suficiente para combater trabalho escravo com boicote via internet, é ineficaz mesmo quando há boa intenção. Precisamos saber disso para dar a importância devida a quem trabalha sério e sem tanta visibilidade. Essas pessoas são as que trarão soluções.

Como vivemos uma era de pensamento binário, muita gente conclui um disparate a partir dessa informação. Sou obrigado então a consumir algo que eu sei que foi feito com trabalho escravo? Se posso escolher entre algo que tem ou não trabalho escravo, devo abrir mão disso? São duas perguntas que me fazem frequentemente.

Essa é uma decisão moral e de consciência, só que insuficiente para o combate efetivo a um problema grave e complexo. Eu tomo esse tipo de decisão.

Há quase dez anos, assessorei a CPI do Trabalho Escravo na Assembleia Legislativa de São Paulo. Participei de várias operações de libertação de pessoas em condição análoga à de escravo. Até hoje não consigo nem entrar nas lojas dessas marcas. Nada dessas marcas entra na minha casa. É um processo pessoal de consciência e eu sei que não tem impacto na situação real. Quem interfere nela é o pessoal que está até hoje com a mão na massa.

O Lollapalooza não é uma empresa de varejo, é um festival esporádico. Argumentar que o boicote não adiantaria porque a empresa já auferiu os lucros é uma simplificação para fingir que nossos aguerridos militantes de teclado realmente querem combater trabalho escravo.

Pense que nossos justiceiros sociais digitais pressionassem com a mesma energia os artistas para não participar do festival. Que pressionassem seus pares a não ir em protesto. Que declarassem abertamente que não vão porque não compactuam com trabalho escravo. Essa edição teria uma crise de imagem que com certeza impactaria as novas edições.

Nossos boicotadores recreativos pleiteiam e conseguem que shows de humor sejam cancelados. A justificativa é que determinados humoristas - Léo Lins é o grande nome - potencialmente colocam pessoas em risco com o conteúdo de suas piadas. Estamos diante de um caso em que pessoas efetivamente foram colocadas em risco. Estranhamente, não vemos um movimento enérgico e aguerrido, vindo dos mesmos boicotadores, para que o Lollapalooza seja cancelado.

Fica claro que trabalho escravo não está no radar dessa turma e que pessoas escravizadas não têm protagonismo aqui. O protagonismo, como sempre na nossa sociedade classista, é da elite urbana em sua necessidade de aparecer como defensora de causas nobres sem ser.

Exponho a hipocrisia e a desconexão com a realidade, não faço uma defesa de boicote ao Lollapalooza porque não seria efetiva para eliminar o problema constante de pessoas escravizadas pelas terceirizadas.

Entendo que, neste caso, a eficácia seria que as autoridades aplicassem da forma devida a Lei Paulista contra o Trabalho Escravo, de autoria do atual secretário de Assistência e Desenvolvimento Social, Carlos Bezerra Jr. Ela prevê a suspensão por 10 anos do CNPJ de empresas relacionadas a essa prática no Estado, para além das demais consequências trabalhistas e criminais. Tudo processado, ponderado e julgado de acordo com a lei, incluindo a possibilidade de Termos de Ajuste de Conduta, para evitar que o fato repetido quatro vezes venha a acontecer uma quinta.

O mais importante aqui é perceber que nossos boicotadores e canceladores não vão oferecer soluções práticas. Devem ser levados tão a sério quanto tarô, runas, pensamento positivo e simpatias.