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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Investigação da PF sobre 8/1 muda paradigma sobre Justiça Militar no Brasil

Homem roubou réplica da Constituição durante os atos golpistas de 8 de janeiro - Reprodução
Homem roubou réplica da Constituição durante os atos golpistas de 8 de janeiro Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

10/04/2023 21h26

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A intimação pela Polícia Federal de 80 militares, incluindo os de mais alta patente, na investigação sobre 8/1 quebra um paradigma sobre Justiça Militar. O esperado é que ali fosse o palco de qualquer apuração envolvendo militares em serviço. A reportagem de Aguirre Talento no UOL informa com exclusividade que isso não vai acontecer.

São 80 intimações já expedidas, incluindo generais que comandavam o Batalhão de Guarda Presidencial e o Gabinete de Segurança Institucional. O general que chefiou o Comando Militar do Planalto é um dos intimados, algo impensável até alguns meses atrás.

Existe, no meio jurídico, uma discussão sobre a estrutura da Justiça Militar em si. Diferente do que muita gente pensa, ela não é herança da ditadura militar nem uma jabuticaba. Cortes marciais existem em diversas das grandes democracias e isso faz sentido.

Militares têm estruturas muito particulares de hierarquia, disciplina, regras e ética. Também têm um trabalho muito específico, que envolve direitos e deveres profundamente diferentes daqueles do cidadão comum.

As Forças Armadas e polícias militares são braço armado do Estado, têm licença para aplicar a violência no cumprimento dessa obrigação. Em tese, é uma dinâmica específica que precisa ser analisada por quem realmente domina essa realidade nos casos de julgamentos criminais por atos cometidos no exercício da função.

Os casos envolvendo abuso de policiais militares em ação são os mais conhecidos da população e geralmente o mote da discussão sobre a estrutura da Justiça Militar em si. Há setores que reclamam de corporativismo e favorecimento, de penas mais brandas porque todo o sistema é controlado pelos próprios militares. Casos rumorosos de mortes de criminosos e chacinas dominam esse debate.

Uma hipótese é de que levar tudo para a Justiça comum traria penas mais próximas daquelas que a sociedade anseia, já que não haveria o corporativismo. O Tribunal do Júri, em que cidadãos são julgados por seus pares, frequentemente é citado como o foro mais adequado para penas condizentes com os anseios da população.

Faz sentido na teoria, resta entender como seria a prática. Cidadãos comuns estariam dispostos a votar por condenações pesadas de policiais militares e integrantes das Forças Armadas ou temeriam retaliações? Em que medida o raciocínio de que "bandido bom é bandido morto", presente na sociedade, teria impacto nesses julgamentos? Não sabemos.

O julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro também é frequentemente citado, principalmente depois da publicação do livro "O cadete e o capitão", pelo falecido jornalista Luiz Maklouf de Carvalho. Ele teve acesso inédito às gravações do julgamento e conta que a imprensa foi mais julgada que o réu.

Os processos de Jair Bolsonaro por insubordinação e ameaça terrorista tinham como pano de fundo publicações da revista Veja. Foi contaminado pelo atrito entre os militares e a imprensa no fim da ditadura. Já sabemos o desfecho, absolvição por 9 votos a 4.

Naquela época, a insubordinação já rendeu fama, inclusive entre os postos mais altos, algo que parecia impensável. Hoje, na era das redes sociais, a insubordinação de policiais e militares frequentemente rende dividendos políticos. Temos uma safra de deputados que foram frequentadores assíduos de tribunais disciplinares.

Parece que a Justiça Militar não consegue ainda resolver esse nó. Uma expectativa agora é que a entrada da Polícia Federal na investigação de militares em 8/1 mude essa equação. Seria uma forma de evitar o corporativismo e interromper o processo de politização das funções de Estado.

Ainda não sabemos como isso vai se desenrolar. A Polícia Federal pode ter mais facilidade e liberdade para investigar, mas só teremos essa certeza ao final das investigações. Os tribunais civis podem ter penas menos politizadas, mas também só saberemos se isso vai ocorrer ao final do processo.

Todo esse movimento será inevitavelmente capturado por outra discussão do Judiciário, a existência em si da Justiça Militar. O princípio da economicidade é frequentemente citado nesse debate, seria uma redução monumental de custos.

É um momento crucial para o Judiciário brasileiro. Ter ou não cortes marciais é uma decisão estratégica para o Estado, com impactos de longo prazo. A estrutura, escopo e forma de atuação dessas cortes também. Essa discussão será inevitavelmente capturada pelo debate político imediatista, polarizado de forma absolutamente tóxica.

Resta esperar que sejamos capazes de, no meio disso tudo, usar o cérebro mais do que o fígado.