Não, presidente Lula, o conceito de democracia não é relativo

Hoje, numa entrevista à Rádio Gaúcha, o presidente Lula voltou a dizer que a Venezuela é uma democracia. Agora, no entanto, foi além, disse que o conceito de democracia é "relativo". Não é e ele sabe disso. Lula tem dito de forma reiterada o que pensa sobre democracia, passou da hora de levar a sério.

Transcrevo alguns trechos do diálogo de hoje. No primeiro, o presidente Lula diz abertamente que uma autocracia eleitoral é uma democracia:

Presidente Lula - Deixa eu lhe falar uma coisa: a Venezuela, ela tem mais eleição do que no Brasil. A Venezuela, desde que o Chávez tomou posse?

Rodrigo Lopes - Mas eleições não garantem democracia, né, presidente?

Presidente Lula - Deixa eu lhe falar, deixa eu lhe falar uma coisa: o conceito de democracia é relativo para você e para mim.

Mais adiante, quando o jornalista, cidadão brasileiro, diz que foi preso pela ditadura Venezuelana, a reação do presidente do Brasil é absolutamente inexplicável:

Presidente Lula - Vai ter eleições este ano na Venezuela. Vai ter eleições. A Rádio Gaúcha pode mandar lá, mandar uma equipe lá para saber se ela vai ser legítima ou não.

Rodrigo Lopes - Presidente, eu fui preso na Venezuela três anos atrás. Então, o senhor diria hoje que a Venezuela é uma democracia?

Presidente Lula - Deixa eu lhe falar uma coisa: Em 1900 e... em 2001, eu tinha apenas 20 dias de governo e eu criei o grupo de amigos da Venezuela. Em que participou Estados Unidos, Espanha, Brasil, Argentina, me parece que Canadá. E nós conseguimos fazer com que acontecesse o referendo lá. O referendo foi legítimo.

A entrevista de hoje foi especialmente constrangedora porque o condutor, Rodrigo Lopes, é um jornalista brasileiro que já foi preso pela ditadura de Nicolás Maduro ao tentar cobrir um protesto em Caracas. Antes de ser amigo do presidente venezuelano, Lula é presidente do Brasil. Ou deveria ser assim.

Os interesses e liberdades democráticas dos cidadãos brasileiros deveriam vir antes das afinidades ideológicas ou pessoais de quem se elege democraticamente mandatário de uma nação. Ainda mais quando essa eleição é toda fundamentada em defender e restaurar a democracia aviltada pelo ex-presidente.

Inúmeros setores da sociedade civil se uniram em torno do nome de Lula e pediram votos a ele em defesa da democracia. É grave que ele comece a dizer que o conceito de democracia é relativo e engloba autocracias eleitorais. Seria essa a democracia que ele pretende implementar por aqui? Espero que não.

Hoje à noite será a abertura em Brasília da reunião do Foro de São Paulo, grupo de partidos da esquerda marxista latinoamericana fundado por Lula e Fidel Castro em 1990. É um movimento criticado não apenas por adversários políticos, mas pela própria esquerda democrática. Não é raro que os ditadores aclamados pelo grupo ataquem esquerdistas democráticos como Gabriel Boric e Pepe Mujica. Os dois dizem com todas as letras que a Venezuela é uma ditadura. Mujica foi mais longe ao dizer em 2016 que "Maduro está louco como uma cabra".

A direção do Foro de São Paulo este ano está a cargo do PT, representado pela militante histórica Mônica Valente, casada com o também histórico tesoureiro do PT Delúbio Soares. Ela deu uma entrevista recente reclamando dos ataques mentirosos da direita e extrema-direita a governos de esquerda na América Latina.

Perguntada pelo Diálogos do Sul sobre exemplos, citou os órgãos de imprensa que chamam a Venezuela de ditadura. "Não é verdade. Em 25 anos de governo do Chavismo, houve 23 eleições. Se isso não é democracia, democracia é o que tivemos aqui no Brasil com as fake news que estão sendo agora desmascaradas?", questionou.

O Brasil é um dos países que mais recebem gente fugida da ditadura venezuelana. O Tribunal Penal Internacional, em Haia, acaba de reabrir a investigação do regime venezuelano por crimes contra a humanidade. São documentadas as execuções e sumiços de adversários, prisões arbitrárias, estupros sistemáticos na cadeia e todo tipo de violações de direitos. Lula sabe dos fatos e diz que isso é uma democracia. Precisamos ouvir e entender os planos do presidente.