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Maria Carolina Trevisan

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Saul Klein: o jornalismo e a força do relato das vítimas

Colunista do UOL

29/03/2022 04h00

Não há nada mais forte do que o relato de vítimas de violência para compreender a dimensão dos danos gerados por ela.

Do ponto de vista do jornalismo, nem sempre é necessário entrevistar pessoas que sofreram violações para contar suas histórias. Muitas vezes é possível reconstituir contextos, trajetos, falas, abordagens com base em outros depoimentos, entrevistas, provas, preservando as vítimas de tomarem contato com a dor novamente.

Quem cobre direitos humanos sabe que pedir às vítimas que revivam as violências é um dos últimos recursos da reportagem, que só deve ser usado quando suas versões são desacreditadas, quando a Justiça é morosa, quando se duvida da brutalidade dos fatos, e/ou quando o ator das agressões é muito poderoso — o que geralmente mobiliza toda essa cadeia de omissão.

No caso envolvendo Saul Klein, bilionário e herdeiro de um império, ouvir os relatos diretamente de cinco jovens que afirmam terem sido obrigadas e coagidas a se relacionar social e sexualmente com Saul tem um impacto muito forte, capaz de mover as peças até agora acomodadas. O conjunto de entrevistas, convergentes e similaridades nos detalhes, organizado na série documental "Saul Klein e o Império do Abuso", do UOL, consegue mostrar o tamanho da crueldade que essas meninas enfrentaram.

Saul é acusado por 14 vítimas dos crimes de estupro, estupro de vulnerável, cárcere privado, transmissão de doenças venéreas, favorecimento à prostituição, lesão corporal, violência psíquica e organização criminosa, segundo a apuração dos jornalistas Camila Brandalise, de Universa, e Pedro Lopes, do UOL Esporte, que investiga essas denúncias há quase três anos.

Com direção de Paula Sacchetta, também especialista em colher depoimentos delicados, e produção de MOV, o documentário mostra como funcionava o organograma que contava com aliciadoras, médicos, motoristas, seguranças e uma grande equipe, que vivia para satisfazer os desejos excêntricos do empresário. Ele escolhia meninas com aparência infantil, voz de criança e muito brancas. Uma das jovens conta que precisava passar talco no corpo para clarear a pele.

O esquema durou cerca de 15 anos e foi revelado pela jornalista Monica Bergamo, da Folha, em dezembro de 2020, quando Saul teve o passaporte apreendido pela Justiça. Dias depois, o repórter Pedro Lopes publicou os primeiros depoimentos das vítimas, a rotina e os acordos de silêncio na reportagem "O harém do príncipe". No ano seguinte, a Agência Pública mostrou as acusações de crimes sexuais cometidos pelo pai de Saul, Samuel Klein, fundador das Casas Bahia.

Uma das peças mais importantes desse quebra-cabeças, e que está no documentário lançado nesta terça (29), é a entrevista da ex-funcionária Ana Paula Fogo, a "Banana". Ela aliciou e acompanhou as meninas nas fantasias de Saul. "Eu aceito o ódio de muitas meninas porque eu acatava 100% o que ele falava e falava para elas. Até porque ele dizia que alguém tinha que morder pra ele assoprar", disse.

Banana também alega ter sido ela mesma vítima do empresário. Em comum, elas tinham o sonho do amor em conto de fadas, em que elas seriam as princesas e ele seria o "reizinho", o príncipe encantado que as ajudaria a mudar de vida.

Três fatores principais contribuíram para o silêncio das vítimas (e talvez de outros atores) em denunciar as violências: a vulnerabilidade social e econômica em que viviam, o que fez com que houvesse um vínculo de dependência financeira; a vergonha de assumir que tiveram de se submeter aos horrores de uma rotina de obrigações sexuais; e o medo gerado por ameaças e intimidações. O documentário revela dinâmicas perversas e doentias.

São depoimentos chocantes, tristes, de submissão forçada, violência e tortura. As experiências levaram uma das vítimas ao suicídio e outras a atentar contra a própria vida. De fato, uma parte de cada uma delas, do que eram e de quem poderiam ter sido, morreu. "Quero justiça. Pela menina que fui e pela menina que eu poderia ter sido", diz uma das vítimas.

Foi a perda da amiga que as mobilizou a denunciar Saul.

Essas atrocidades precisam reconhecidas como crimes pela Justiça para que as feridas comecem a cicatrizar. Não haverá cura completa para quem teve contato com traumas dessa profundidade. Porém, é possível reconstruir a vida, desde que a verdade seja restabelecida, que os crimes sejam reconhecidos, que os responsáveis sejam responsabilizados. É a única chance de recomeçar.

Ao tornar pública a dimensão das vítimas, contextualizar os fatos e mostrar suas consequências por meio do conjunto de reportagens, o jornalismo cumpre uma de suas funções sociais: denunciar violações, levá-las ao debate público para que possam ser investigadas pelas instâncias responsáveis e, por fim, abrir espaço para a reparação por meio do conhecimento dos fatos e da Justiça.

Como disse uma das jovens, essa história precisa ter um fim.