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Mauricio Stycer

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Atacado por entrevista com Dilma, Jô prezava a liberdade e a tolerância

13.jun.2015 - Dilma Rousseff é entrevistada por Jô Soares no Palácio da Alvorada - Roberto Stuckert Filho/PR
13.jun.2015 - Dilma Rousseff é entrevistada por Jô Soares no Palácio da Alvorada Imagem: Roberto Stuckert Filho/PR

Colunista do UOL

05/08/2022 10h56

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Como os melhores comediantes, Jô Soares era um espírito livre, independente. Morto nesta sexta-feira, aos 84 anos, sempre defendeu a liberdade de expressão, nunca aceitou que se estabelecesse limites ao humor, e jamais apoiou qualquer projeto que tivesse cheiro de censura ou autoritarismo.

É pensando nisso que se deve entender uma das entrevistas mais surpreendentes e polêmicas que fez. Em junho de 2015, Jô e sua equipe foram a Brasília conversar com a presidente Dilma Rousseff.

Foi uma conversa amena, sem questionamentos mais duros. O apresentador não evitou assuntos espinhosos, mas adotou uma postura gentil, seja fazendo perguntas abertas (e pouco específicas), seja evitando contestar as respostas com réplicas.

Naquela altura, Dilma estava já sob bombardeio pesado do Congresso e da mídia - a Câmara dos Deputados aprovou o pedido de impeachment poucos meses depois, em dezembro daquele ano.

Apresentando talk shows desde 1988, aquela foi apenas a segunda vez que Jô entrevistou um presidente do Brasil em exercício. A primeira foi com Fernando Henrique Cardoso, à época da reeleição. No final de abril de 2004, em um episódio rumoroso, Jô cancelou uma entrevista agendada com Lula, insatisfeito ao saber que o então presidente iria receber dias antes o apresentador Ratinho, do SBT, na Granja do Torto.

A entrevista com Dilma foi quase unanimemente criticada; Jô foi ofendido e até ameaçado por ter tratado a presidente com cordialidade. Conversei com ele no dia seguinte ao programa, e ele falou:

"Achei essa a entrevista a mais importante da minha carreira pelo momento em que a gente está vivendo. É um momento difícil para a presidente e achei corajoso ela me receber. Me deixou emocionado". Jô tratou com bom humor as primeiras críticas à entrevista, considerada muito favorável à presidente. "Sou petista de raiz", me disse, rindo. Dias depois, alguém pichou na rua, em frente ao seu prédio: "Morra Jô Soares".

Em nota, nesta sexta-feira, Dilma registrou: "Jô foi a única voz dentro da Globo disposta a me ouvir naquele momento. E disso eu não me esqueço".

Em 2016, ao iniciar a última temporada do "Programa do Jô", ele voltou a falar do assunto: "Sempre tive liberdade para demonstrar todas as tendências políticas. Nunca deixei de entrevistar um presidente deste ou daquele partido. Quando entrevistei a Dilma me chamaram de petista. Quando entrevistei o Fernando Henrique virei PSDB. Então eu sou 'coxista', metade coxinha, metade petista", disse. "Lula veio ao programa 13 vezes, Fernando Henrique dez vezes. Acho que essa é a maior prova de imparcialidade", acrescentou.

Entre as incontáveis realizações de Jô Soares, esta talvez seja uma das mais sutis e atuais: a cordialidade e tolerância com os diferentes.

Adendo: Jô Soares publicou sua autobiografia em dois volumes, no início e no fim de 2018. "O Livro de Jô - Uma autobiografia desautorizada" é uma obra ao mesmo tempo divertidíssima e reveladora. Em parceria com o jornalista Matinas Suzuki Jr, Jô revisita sua trajetória pessoal e profissional em detalhes. É imperdível para conhecer e entender melhor o artista. Escrevi sobre o primeiro volume e sobre o segundo.