Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
"Nó nas tripas" de Bolsonaro escancara fosso da desigualdade e mitificação
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A imagem de um presidente da República expondo a fragilidade quando o seu discurso é de ódio e de força é uma dissonância cognitiva, mas é a tentativa de articular uma fala para os incautos que lhe rendam homenagens, reforçando a sua martirização.
A facada de Juiz de Fora, lamentável episódio por qualquer ângulo que seja analisado, foi, sem dúvida, o fator que contribuiu de maneira decisiva para que se criasse uma figura de vítima ao capitão, "de tudo isso que está aí", da intolerância de "comunistas" e de pessoas em compadrio com o malfeito, que estariam corroendo as riquezas e a dignidade do país. Foi eleito.
A exploração de uma imagem de mártir foi elemento de potencialização de uma fala que apontava o dedo contra tudo e contra todos e era o mais eficiente recurso para demonstrar, sim, que havia um mártir-mito. Milhões concordaram, até porque o mártir não teve que se prostrar diante da nação, oferecendo propostas e debatendo ideias. Bastava a imagem projetada de cama de hospital e uma doce gratidão pelas preces. Os sabujos cuidavam da campanha. E os milhões de seduzidos pela imagem do mártir votaram e consolidaram a existência de um mito, falso mito. Uma mitificação.
O "nó nas tripas" do capitão, cuja dificuldade em fazer o trânsito intestinal vinha sendo sinalizada por crise de soluço persistente por mais de uma semana, também era o desejo inconsciente de algo que não se realizava. Afinal, num ato falho, durante a "live" da semana passada, em resposta à CPI da Pandemia, que pedia respostas sobre denúncia levada a ele, de indícios de corrupção no Ministério da Saúde na compra da vacina Covaxin, o capitão ofereceu o verbo que é agora a sua maior ambição conjugar. Os médicos, em observação clínica do paciente, só querem isso, que as fezes cheguem ao vaso sanitário, como aludiu o capitão que teria feito para os parlamentares. De fato, era falsa revelação. Apenas um desejo.
Para que o capitão retome as funções plenas de seu intestino, foram mobilizados médicos, aviões, ambulâncias, segurança. O tema quase passou a ser assunto de segurança institucional. Mas o reizinho não foi para o troninho. E aí fica escancarada a diferença entre a assistência médica dada a uns e a outros.
Mais de meio milhão de pessoas morreram no Brasil, vítimas, estas sim, vítimas reais de decisões e de malfeitos. Morreram "por causa de tudo isso que está aí". Esse é o discurso das famílias, dos amigos, do povo que encara agora, como num BBB em TV aberta, o descalabro no enfrentamento da pandemia, resvalando para denúncias, não apenas de incompetência, de omissão por negacionismo, mas também - investiga-se - por corrupção.
Fizeram filas, milhares de pessoas, para ter acesso a um leito, a um respirador. Muitos, muitos, morreram na fila. E não foram mais numerosos porque o SUS (Sistema Único de Saúde), criado pela Constituição Cidadã de 1988, reconhece a todo cidadão brasileiro acesso integral, universal e gratuito a serviços de saúde. Um direito que foi desafiado pelo capitão, numa lógica de que a Covid-19 era uma "gripezinha", recalcitrante, por razões ainda a serem identificadas com clareza, na sua obrigação de dar condições ao SUS para que cumprisse as suas finalidades.
O capitão tem aviões à disposição, batedores para que nada obstrua o seu deslocamento. Tem médicos brigando para atendê-lo e a disputa de marketing de hospitais de ponta, que sonham em ter a sua fachada exposta diariamente pelas redes de televisão, como ponto de atendimento de um presidente, ganhando o status rápido de celebridade e referência em excelência. Uma propaganda de graça que não faz mal a qualquer marca empresarial.
Mas, o retrato é o da desigualdade - é avião, o corre-corre de gente em dedicada azáfama, o hospital de luxo, o atendimento rápido e prestimoso - aliás, a que todo brasileiro e brasileira deveria ter acesso, não o de morrer pelo descaso de autoridades.
O retrato é, mais uma vez, o de um homem na cama de hospital. Explora a ideia de fragilidade com discurso político, em que atribui a sua obstrução intestinal a uma tentativa de assassinato por antigo filiado de partido político adversário dele. Sim, está com dificuldade para ir ao vaso sanitário por causa da facada. Mas essa facada foi dada por um homem cujo ato foi um desvario, sem política. Investigações foram feitas e refeitas, com a mesma conclusão.
Mas o capitão insiste. Um falso mártir, que quer se mitificar, uma mistificação.
O martírio dele não se compara ao martírio de milhares, de milhões de brasileiros que não tiveram a chance de tratamento, de acesso à prevenção, que morreram. E aos outros tantos milhares à espera de tratamento de sequelas dolorosas e incapacitantes em decorrência da Covid-19.
Que o capitão sare logo, que as fezes encontrem o seu caminho livre. Que o capitão não tenha motivos para fugir à sua responsabilidade e responsabilização. Saúde, capitão.
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