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Plínio Fraga

Os perigos das caronas indesejáveis dos políticos nas vitórias do Flamengo

Declaradamente corintiano, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), participou da celebração dos jogadores do Flamengo - FAUSTO MAIA/AGÊNCIA O DIA/ESTADÃO CONTEÚDO
Declaradamente corintiano, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), participou da celebração dos jogadores do Flamengo Imagem: FAUSTO MAIA/AGÊNCIA O DIA/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

25/11/2019 04h22

Um jornalista de Lisboa me enviou um programa antigo de uma emissora de televisão portuguesa com uma série de "calinadas" ou deslizes linguísticos do treinador do Flamengo, Jorge Jesus _ comandante das vitórias espetaculares na Libertadores da América e no Campeonato Brasileiro de 2019. Queria demonstrar que ele é visto tanto como talentoso quanto folclórico em sua terra natal.

No vídeo, ouve-se Jesus dizer "espetal" em vez de espetáculo, "slogon" em vez de slogan, "Sttugarda" em referência ao clube alemão Sttugart, em Portugal também chamado de Estugarda. Num certo momento, cita um jogador que está pedindo "neutralidade", quando de fato queria dizer naturalização. O citado jogador queria adquirir a cidadania de país diferente do qual nasceu. Um jornalista chegou a escrever um livro "Papagaio de Jesus", em que reúne dezenas de causos sobre Jesus. O autor chegou a definir o treinador como mestre, mas em seguida ridiculariza: "Como é, Jesus já é um talento, imagina se falasse inglês, francês ou português...'

À abordagem pedante e antipática, Jesus respondeu com elegância e inteligência: "O futebol tem uma linguagem própria. Não é um português universitário, com todas as vírgulas e pontos finais no lugar. Porque senão nem os jogadores me entendem."

Jorge Jesus, em 30 anos de carreira como treinador, recebe cobertura de celebridade em Portugal. Sabe-se que não come carne, trata cães como se fossem humanos, submeteu-se a tratamento para alisar os fios de cabelo, recorreu ao botox para diminuir as rugas do rosto e fez clareamento nos dentes. Os cabelos longos e prateados são um item à parte na cobertura portuguesa com citações ao uso de papel laminado para realçar cor e ao uso diário de queratina, proteína que dá ao cabelo resistência e elasticidade, evitando que resseque.

Nada disso retrata o que é Jorge Jesus em essência. Em seis meses no Flamengo, cumpriu à risca o que prometeu: um time ofensivo e que desse show para a torcida, como disse ao chegar. Anunciou-se como um treinador criativo. Disse que nunca lera livros sobre teoria do futebol, mas assegurava que criara em três décadas de carreira um método próprio de treinamento e orientação para jogadores. Nunca copiara nada de ninguém, nem mesmo de ser maior ídolo, o holandês Johan Cruyff. Os jogadores do Flamengo e muitos outros que trabalharam com Jesus atestaram sua capacidade de orientação, leitura dos jogos e elaboração de estratégias vitoriosas.

O Flamengo é um exemplo vivo do trabalho de Jesus. O time treinado por Abel Braga no primeiro trimestre dava aborrecimento. O do segundo semestre é de uma alegria e eficiência raras no futebol mundial.

O profissionalismo e a capacidade de invenção de Jesus podem mesmo ajudar o futebol brasileiro a mudar de patamar. O Flamengo, após duas gestões comprometidas com o saneamento das finanças do clube, entra em 2020 com a chance de tornar-se uma marca mundial. Já é o clube que mais vendida camisas da Adidas _ graças aos milhões de rubro-negros brasileiros. Tem ainda o mundo a conquistar.

O que pode atrapalhar essa jornada é a diretoria do Flamengo, com incrível atração para envolver esporte e política de modo predatório. Mais de um ex-ocupante da presidência do Flamengo tentou usar o cargo como trampolim para a política. Márcio Braga, o presidente dos títulos mais marcantes, foi o que obteve mais destaque, tendo sido deputado federal por diversas legislaturas.

A atual diretoria _ que alardeia sua experiência empresarial _ já deu mostras de ignorância política _ seja ao condenar uma homenagem da torcida a Stuart Angel, militante morto pela ditadura militar, seja por se aproximar de maneira aduladora do presidente Jair Bolsonaro e do governador Wilson Witzel. O drible que este tomou do atacante Gabriel Batista foi desmoralizador, com Witzel ridiculamente se postando de joelhos e sendo ignorado. Sim, o Flamengo quer administrar o Maracanã e depende de Witzel para tal. Em honra à sua imensa torcida, a diretoria deve adotar ideais republicanos e civilizatórios. Tanto Bolsonaro quanto Witzel já entraram em campo em jogos do Flamengo, numa mistura de deslumbramento e oportunismo condenáveis.

A sorte do Flamengo como time é que Jorge Jesus tem um lema: "No vestiário, mando eu", afastando qualquer ingerência da cartolagem. Esta, por sua vez, deveria estar focada em questões prementes como a formação e a proteção de talentos _ o que inclui total amparo aos familiares dos meninos mortos no centro de treinamento Ninho do Urubu. Ou mesmo em buscar garantir ao torcedor que vá aos seus jogos o mínimo de conforto. Por exemplo, os milhares de flamenguistas que estavam no Estádio Monumental de Lima na final da Libertadores, sob sol intenso, surpreenderam-se porque mal havia água à venda. Os vendedores tinham apenas Pepsi-Cola quente (R$ 30 o copo). Muitos beberam água da torneira dos banheiros, que por sinal lembravam os do Maracanã 30 anos atrás. Nenhum dos dirigentes do Flamengo viu ou protestou na confederação sul-americano sobre o descaso com os torcedores. Estavam ocupados em adular o governador. Sorte é que torcedores sabem fazer graça. Quando um helicóptero sobrevoou o estádio, um deles disse: "Abaixa, gente. O Witzel está aí e vai mandar bala em todo mundo."