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Aposta no Oscar, 'Marte Um' escancara o 'a gente dá um jeito' do brasileiro

Cena do filme "Marte Um" - Divulgação
Cena do filme "Marte Um" Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

15/09/2022 04h00

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A psicanalista Neusa Santos Souza (1948-2008), em seu livro "Tornar-se Negro", destaca que uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo que esteja alinhado com a realidade vivida. Tratando-se das experiências negras, essa possibilidade foi apresentada pelo filme "Marte Um", escolhido para representar o Brasil no Oscar 2023.

O filme, dirigido e roteirizado por Gabriel Martins, um jovem cineasta negro, foca o cotidiano de uma família mineira, cuja história é ambientanda em Contagem (MG), entre o final de 2018 e início de 2019.

Há muito o que dizer sobre o "Marte Um", mas, conforme descreveu a crítica de cinema Viviane Pistache, é um filme sobre e para famílias negras. Por meio dos sonhos, medos, frustrações e realizações deste núcleo familiar, nos aproximamos das estratégias de sobrevivência da maioria delas no Brasil. Afinal, morte, a fome, o desemprego e o encarceramento estão sempre à espreita. Com inteligência e sensibilidade, a trama adentra a intimidade do clã Martins, sem resvalar para os persistentes estereótipos em torno da violência e da hipersexualização.

Vivemos em um país de maioria negra, cujas famílias negras não se vêem nas telas. As produções do audiovisual, em especial as telenovelas, têm construído um imaginário em que as personagens negras aparecem como apêndices na vida de pessoas brancas, como se não tivessem vivências próprias.

Em seu documentário "A negação do Brasil" (2000), sobre a trajetória negra na teledramaturgia brasileira, o cineasta Joel Zito Araújo demonstra a invisibilidade das famílias negras nas produções audiovisuais na TV e os estereótipos racistas que foram sedimentados ao longo dos anos. Essa análise pode ser estendida ao cinema. "Marte Um" se desloca desse viés e apresenta uma família que lida simultaneamente com estratégias de sobrevivência e seus projetos de futuro.

No senso comum, circula a ideia de que a concretização de um desejo depende somente do sujeito. Contudo, a máxima de que o céu é o limite não se aplica a todos. As desigualdades construídas sob as diferenças de classe, gênero, raça e região definem quem está autorizado a sonhar e realizar o que se sonha. Por isso, é dever do Estado garantir, por meio de políticas públicas, condições para pessoas negras e pobres exercerem o direito de colocar seus anseios no horizonte. Ao posicionar o sonho no centro da narrativa, o filme mobiliza três temporalidades e seus afetos correlatos.

A primeira está relacionada à eleição do presidente Jair Bolsonaro, em 2018, que representou um retrocesso nas políticas públicas destinadas à população negra e povos indígenas. A sensação de insegurança dada pelo desemprego e medo de não conseguir pagar as contas é vivenciada pelo pai Wellington (Carlos Francisco), que trabalha como porteiro, e pela mãe Tércia (Rejane Faria ), diarista. Dar conta das necessidades do aqui e agora gera ansiedade.

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Cena do filme 'Marte Um', escolhido pelo Brasil para concorrer ao Oscar
Imagem: Divulgação

Outra temporalidade explorada pela narrativa são os efeitos das ações afirmativas no campo da educação, especialmente a lei de cotas. A filha Eunice (Camila Damião) cursa direito em uma universidade pública. Apesar de o filme não deixar evidente que ela ingressou na universidade por meio das cotas, fato é que esta política ampliou a presença negra nas universidades. Por conta dela, milhares de famílias brasileiras puderam ver seus filhos e filhas na universidade. É um sonho que, no contexto atual, tem sido ameaçado pelo corte de orçamento nas universidades públicas, o que impõe dificuldades de permanência para estudantes cotistas.

A terceira temporalidade evoca o futuro. Deivinho (Cícero Lucas), filho mais novo, é um adolescente bom de bola que sonha virar astrofísico. Ele deseja integrar o projeto Mars One, que planeja colonizar o planeta vermelho em 2030. O anseio esbarra na expectativa do pai, torcedor apaixonado do Cruzeiro, que projeta em Deivinho seu desejo de melhorar as condições de vida da família. Wellington, que é explorado no trabalho, alimenta a esperança de o filho superar essa situação por meio do futebol. Deivinho, porém, tira os pés do chão e mira em Marte.

No ano do bicentenário da Independência do Brasil e de eleições presidenciais, "Marte Um" provoca: qual projeto de futuro iremos construir para mais Deivinhos tenham seus sonhos realizados e Eunices entrem e continuem nas universidades? No filme, o pai diz ao filho: "A gente vai dar um jeito." Isso é o que as famílias negras e pobres têm feito historicamente. Nós precisamos, no entanto, que o Estado se ocupe do futuro por meio de políticas públicas.