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Os 200 anos da Independência e a omissão do Brasil com o tráfico negreiro

Memorial do Instituto de Pesquisa e Memória dos Pretos Novos, no bairro Gamboa, no Rio de Janeiro (RJ). - Halley Pacheco de Oliveira
Memorial do Instituto de Pesquisa e Memória dos Pretos Novos, no bairro Gamboa, no Rio de Janeiro (RJ). Imagem: Halley Pacheco de Oliveira

Colunista do UOL

25/08/2022 04h00

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O intelectual afro-americano W.E.B. Dubois escreveu que o tráfico negreiro foi "o mais grandioso drama dos últimos mil anos da história da humanidade". Ele estava certo e nunca é demais lembrar o que significou esse comércio de seres humanos que durou mais de 400 anos e foi a maior migração forçada da história.

Nesta terça-feira, 23 de agosto, lembrou-se o Dia Internacional da Memória do Tráfico de Escravos e sua Abolição. A data foi instituída pela ONU (Organização das Nações Unidas) em honra aos escravizados da ilha francesa de Saint-Domingue, que se revoltaram contra a opressão colonial em 1791 e proclamaram a independência do Haiti em 1804.

Entre aproximadamente 1500 e 1869, pelo menos 12,5 milhões de pessoas - homens, mulheres, crianças - atravessaram o Oceano Atlântico a bordo dos famigerados navios negreiros, chamados no século 19 de "tumbeiros", em alusão às milhões de vítimas dessa tragédia humana. Milhões, sem hipérbole. As estimativas recentes mostram que pelo menos 2 milhões de africanos sucumbiram ao longo da travessia. Mortandade que seria considerada como genocídio em qualquer outra experiência humana.

Por que esse tema interessa ao Brasil? Porque essa foi a nação que mais recebeu africanos escravizados durante todo o período de vigência da máquina escravista. Os números estão aí: 5 milhões de pessoas, de diversas partes do continente africano, trazidas à força para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar, café, nas minas, carregando pessoas e objetos, vendendo comidas pelas ruas do Brasil. Três dos cinco maiores portos negreiros das Américas estão aqui: Rio de Janeiro, Salvador e Recife. A lista é inglória, mas reflete o papel do Brasil nesse comércio nefasto de seres humanos.

O Império do Brasil e o compromisso com o tráfico

Em tempos de comemoração pública pela efeméride do ano, o bicentenário da independência brasileira, não é demais lembrar como o Estado Imperial brasileiro, sob a liderança de D. Pedro I - o mesmo cujo coração foi transportado com honras de Estado de Portugal para o Brasil há poucos dias - e seu filho, Pedro II, apoiaram ou fizeram vistas grossas ao criminoso contrabando de seres humanos.

Entre 1501 e 1808, data da chegada da família real portuguesa ao Brasil, a nação - até aquele momento ainda uma colônia portuguesa - recebeu mais de 3,2 milhões de pessoas trazidas da África. De lá até 1850 entraram mais 1,9 milhão de pessoas. Esses últimos quase todos ilegais, já que as leis brasileiras proibiam o tráfico desde 1831. O que não impediu que os traficantes continuassem a transportá-los ilegalmente, aos milhares, todos os anos. Houve até um pequeno recuo nas ações dos traficantes negreiros, que logo voltaram com toda a carga à sua atividade ilícita.

Autoridades governamentais pressionavam o governo imperial para extinguir a lei de 1831; agentes públicos fechavam os olhos para a entrada de pessoas desembarcadas dos navios que chegavam da África. Comerciantes e fazendeiros do café armavam navios para buscar ilegalmente cativos no outro lado do Atlântico.

Embaixadores de reinos escravistas africanos buscavam audiências com D. João VI para firmar acordos de manutenção do tráfico. Alguns desses reinos, inclusive, reconheceram rapidamente a independência do Brasil. Havia um compromisso da família real - portuguesa, depois brasileira - com o tráfico que não pode escapar nesse ano de efemérides.

E assim o tráfico perdurou até a proibição definitiva, em 1850, com a lei Eusébio de Queirós. O mesmo personagem que, enquanto atuou como chefe de polícia da Corte no Rio de Janeiro, não reprimiu os desembarques ilegais, mas que deu nome à lei que os extinguia.

O navio negreiro por dentro

Talvez a imagem de um navio negreiro ainda seja bastante abstrata para boa parte do público. Imagina-se que tinham dimensões colossais. Na verdade, um navio negreiro poderia ser bem modesto, em termos de tamanho, o que torna a experiência do tráfico ainda mais traumática.

Tomemos por exemplo o navio "Ermelinda", que fazia a carreira do tráfico entre o Rio de Janeiro e Angola no século 19. Acabou sendo capturado pela marinha britânica em 1841 por indícios de que se preparava para embarcar africanos escravizados. O navio não tinha dimensões maiores do que um caminhão cegonha de 25 metros de comprimento, mas poderia carregar entre 300 e 400 pessoas no seu porão.

Barcos maiores podiam carregar mais pessoas. Algumas embarcações eram superlotadas, causando grande mortalidade pelas péssimas condições sanitárias e de alimentação. Já há muito escrito sobre o tema, mas deixo mais um exemplo: no século 18, um navio negreiro da Bahia carregou mais de 1,2 mil pessoas, número exorbitante até para a época, no qual morreram 280 africanos, mais de 20% do total de pessoas. No final do mesmo século, um desenho interno das condições de transporte do navio "Brooks", de Liverpool, apresentado ao parlamento britânico, foi decisivo para sensibilizar a opinião pública britânica a favor da causa da abolição. E que não se engane o leitor: cifras, porcentagens e imagens de época não dão a real dimensão da tragédia do comércio negreiro.

E os africanos resistiam

Não pense você que os africanos aceitaram passivamente a experiência do tráfico. Os episódios de resistência estão amplamente documentados pelas historiadoras e historiadores. Mas muitos falaram por si. O africano Olaudah Equiano escreveu uma autobiografia, um best seller no final do século 18, na qual narrava a sua experiência desde o sequestro no continente africano, o transporte forçado pelo Oceano Atlântico e a vida em cativeiro nas Américas. Seu relato foi peça fundamental na campanha pela abolição do tráfico britânico, que acabou em 1807.

Outros episódios falam da resistência ainda dentro dos navios. O caso mais famoso é o do barco cubano "Amistad". Os africanos da região de Serra Leoa tomaram o controle da embarcação, mas ficaram à deriva, indo parar no litoral dos Estados Unidos em 1839. Iniciou-se uma batalha jurídica entre representantes espanhóis e americanos, envolvendo políticos, religiosos e abolicionistas. Ao final, venceram os africanos, que conseguiram comprovar seu cativeiro ilícito e retornaram à África. A história espetacular dos sobreviventes do "Amistad" já foi retratada em livros e até em filme.

Aqui, no Brasil, os africanos contrabandeados após 1831 também foram à Justiça para comprovar a ilegalidade do tráfico. O livro recente da historiadora Beatriz Mamigonian mostra diversos desses episódios de batalhas no campo jurídico. A luta pela liberdade nunca deixou de existir no horizonte desses homens e mulheres, fosse no mar ou em terra.

As memórias do tráfico, ontem e hoje

Há diversas ações no campo das memórias do tráfico negreiro. Na cidade de Ouidah, no Benim, um monumento foi erguido para relembrar os mais de 2 milhões de pessoas que deixaram aquele porto para uma vida de escravidão nas Américas, a Porta do Não-Retorno. Há um turismo associado à história do tráfico em outros países africanos.

Em Nantes, um dos principais portos negreiros franceses, foi criado um memorial da abolição da escravidão e uma exposição permanente no museu de história da sobre o seu papel no tráfico negreiro. Essas duas ações são conectadas por um passeio pelas ruas da cidade, mostrando construções associadas ao comércio de seres humanos.

Enquanto isso, no Brasil, o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, principal porto de entrada de africanos escravizados na cidade, Patrimônio Histórico da Humanidade reconhecido pela Unesco desde 2017, está à míngua, apesar das iniciativas dos movimentos sociais, grupos religiosos de matriz africana e da comunidade de historiadores e historiadoras em preservá-lo. O Instituto dos Pretos Novos, local que no século 19 era o cemitério dos africanos recém-chegados que não sobreviveram à jornada transatlântica, necessita de maior atenção das autoridades governamentais e conhecimento do público.

Muita gente fez fortuna com esse negócio, cujo patrimônio chega até hoje. Na Inglaterra, bancos como o Lloyds e o Barclays tinham ligações profundas com o tráfico negreiro e a escravidão. Os dados são do projeto "Legacies of British Slavery Ownership" (Legados da propriedade escravista britânica), do University College London. Já passou da hora de fazer algo semelhante para o Brasil.