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Presença Histórica

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Lembrar só de quem é excepcional esconde a gente comum que muda a História

Glória Maria é entrevistada no "Roda Viva" - Reprodução/TV Cultura
Glória Maria é entrevistada no "Roda Viva" Imagem: Reprodução/TV Cultura

Colunista do UOL

08/02/2023 04h00

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A morte da jornalista Glória Maria atravessou a imprensa brasileira. De muitas maneiras, sua trajetória profissional ímpar foi revisitada e seu pioneirismo intensamente destacado. Os inúmeros depoimentos destacaram, em sua maioria, a importância da figura da mulher negra nos espaços que ocupou. A ideia recorrente era: Se ela estava lá, era possível sonhar com algo diferente. Sua presença era essencial para acionar a chave da representatividade, além de ter construído uma carreira excepcional.

Tem sido um fevereiro de chegadas, partidas e permanências que nos ajudam a pensar. Lendo sobre Glória lembrei que, no dia 1/2, era dia do nascimento de Lélia Gonzalez (1935-1994), notável intelectual negra mineira, de extrema importância para a história recente dos movimentos sociais negro e de mulheres e da intelectualidade brasileira. Ela completaria 88 anos e isso foi lembrado por um número bem menor de pessoas.

Mulheres amefricanas no plural

Formada em História e Filosofia, com pós-graduação em Comunicação e Antropologia, atuou como professora na educação básica e no ensino superior. Foi uma das fundadoras do MNU (Movimento Negro Unificado), do Coletivo de Mulheres Negras N'Zinga e vice-presidente cultural do IPCN (Instituto de Pesquisas das Culturas Negras). É reconhecida por contribuições pioneiras como a expressa na categoria analítica de "amefricanidade", essencial para refletir a diáspora negra nas Américas sem perder de vista as experiências das populações indígenas em luta contra a dominação colonial. Uma leitura analítica afro-latino-americana do feminismo.

Angela Davis, conhecida intelectual e ativista negra estadunidense em viagem ao Brasil (2019), afirmou que não era necessário buscar referências externas para referenciar o debate sobre feminismo negro: "Aprendo mais com Lelia Gonzales do que vocês poderiam aprender comigo".

Carioca de Vila Isabel, Glória Maria, por sua vez, cursou jornalismo na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC/Rio. No início da década de 1970, entrou para a Rede Globo, empresa onde trabalhou por toda a carreira. A lista de seus feitos memoráveis é imensa e incluiu coisas muito variadas como o fato de ter sido a primeira jornalista a entrar ao vivo no Jornal Nacional (1977) e a sair da órbita da Terra (2007). Conhecida por suas centenas de viagens e entrevistas com celebridades nacionais e internacionais, ainda foi responsável por matérias de impacto como o atentado ao Rio Centro (1981), a Guerra das Malvinas (1982) e a chacina da Candelária (1990), entre tantas.

lélia - Divulgação/Projeto Lélia Gonzalez Vive - Divulgação/Projeto Lélia Gonzalez Vive
Lélia Gonzalez em foto de 1988
Imagem: Divulgação/Projeto Lélia Gonzalez Vive

As iniciativas tidas como excepcionais de Glória não se resumiram à carreira. Na verdade, alcançaram dimensões menos conhecidas como a recuperação do fato de que ela foi a primeira pessoa a recorrer à Lei Afonso Arinos, legislação brasileira de 1951 pioneira na qualificação do preconceito racial como contravenção. Conforme relatou em um programa de TV, o episódio de racismo ocorreu em 1980, no Rio de Janeiro, quando a jornalista foi impedida de entrar no hotel Othon Palace. O caso teve certa repercussão por conta da visibilidade da autora da denúncia. O historiador Jerry D'Ávila registra que, durante o período em que a lei vigorou, dos 23 casos denunciados, só 7 resultaram em condenação. O de Glória não foi um deles.

Filha de pai negro e mãe indígena, Lélia Gonzalez ("preto tem que ter nome e sobrenome") foi uma intelectual ativista que hoje poderíamos qualifcar como "feminista interseccional", modo de abordagem essencial que pautou (e pauta) o enfrentamento da opressão e da desigualdade articulando simultaneamente raça, gênero, classe e outros eixos de exclusão. Participou de vários eventos internacionais e, dentre eles, foi vice-presidente do 1º e 2º Seminário da ONU sobre "mulher e o apartheid" (1980), representante brasileira em um seminário no Senegal (1982) e no Quênia (1982). Foi a primeira mulher negra eleita como uma das "Mulheres do Ano" pelo Conselho Nacional de Mulheres do Brasil (1981). Filiada ao PT e, posteriormente, ao PDT, concorreu, em duas ocasiões, a mandatos parlamentares.

Representatividade ou excepcionalidade, o que importa?

As trajetórias dessas duas mulheres chamam a atenção para muitas questões. Para começar, reforço a da representatividade. São mulheres negras que ocuparam espaços de grande importância e evidência, em diferentes frentes da existência. É impossível ignorar o impacto de gerações inteiras que, ao vê-las sendo o que fora e fazendo o que fizeram, tomaram para si tais experiências como possibilidades de ser e estar no mundo. Essa é uma dimensão indispensável para falar delas.

Uma outra questão que quero destacar, aparentemente, vai em sentido contrário. Qual a razão para que, na abordagem das suas histórias, seja tão destacada a chave da excepcionalidade? Os textos, em sua maioria, fazem uso largo de adjetivos grandiloquentes e ideias de "pioneirismo" e "excepcionalidade". O que quero dizer com isso? Vamos por partes. Para começar, quero lembrar que acionar a perspectiva da "exceção" para contar histórias reforça um tipo de narrativa conservadora e excludente porque, no limite, está se dizendo que só faz sentido registrar pessoas que são únicas. Assim, solidificam-se memórias histórico-sociais que se pautam pela desqualificação das experiências que não se enquadram na chave do pioneirismo.

Um desdobramento possível desse tipo de narrativa pautada na figura do indivíduo ímpar é o fato de que a história, como processo, está sempre sendo "reiniciada". Afinal, veja você, leitor(a), se os indivíduos que podem entrar para a história são aqueles que fazem coisas incrivelmente inéditas, não há acúmulo de experiências coletivas e tampouco a possibilidade mesma de se enxergar processo, mudança e transformação no tempo. A partir desse tipo de história, sempre estamos à espera de um acontecimento (ou criatura) extraordinária que "brota" na sociedade e muda tudo.

Devo lembrar que mulheres negras são a maioria da população brasileira? Creio que não, mas faço questão de perguntar por que razão só merecem ser lembradas as "excepcionais"? Não quero descuidar do impacto da representatividade, mas insisto na ideia de que lembrar pela "excepcionalidade" pode ser uma armadilha. Faço uma pergunta mais direta: só "gente importante" faz história? A resposta muda tudo. Há um provérbio africano, bem conhecido na internet, que diz:

Gente simples fazendo coisas pequenas em lugares pouco importantes consegue fazer mudanças extraordinárias"

O historiador marxista inglês Eric Hobsbawm, entre outros, chama atenção para a necessidade das análises históricas encararem como "extraordinárias" outro tipo de gente. Para ele, pessoas comuns, cujas existências anônimas e consideradas mesmo como "pouco importantes", fazem a diferença. Elas são partes inseparáveis de construções coletivas que asseguram sobrevivências, reinvenções e pertencimentos, além de alimentar e consolidar lutas ancestrais. Também revelam contradições e escolhas de caminhos que dão sentido à vida de muitos e muitas. Essa é a gente que faz História.

Invisibilizar a "gente comum" é parte de um projeto de construção de memória de negação. Nesse caso, das gentes negras e indígenas deste país.

Não me pareceu fora de contexto, nessa linha de argumento, colocar aqui junto a iniciativa do Ministério da Igualdade Racial criando um banco de currículos de profissionais negros, negras e trans para atuar no serviço público. A ministra Anielle Franco ressaltou, em entrevista, que pessoas negras estão se preparando há muito tempo e há um número expressivo de profissionais altamente qualificados disponíveis para ocupar muitos espaços.

Gente negra e indígena está em luta cotidiana e sistemática há séculos para reinventar a vida e ressignificar existências e resistências. No plural e no coletivo. É indispensável reconhecer quem ocupa esses lugares onde a representatividade é essencial e, sobretudo, honrar legados. A excepcionalidade não pode ser a régua de medida das nossas vidas. Nem tampouco das nossas histórias.