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OPINIÃO

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Elza, Pelé e Glória: Quem tem direito à memória familiar no Brasil?

Pelé toca violão para sua avó, Ambrosina, sentada na poltrona, sua mãe, Celeste, sentada na cadeira, e para a irmã, Maria Lúcia, em 1966 - Reprodução/Revista do Esporte, Rio de Janeiro, n. 360, 1966, p.21.
Pelé toca violão para sua avó, Ambrosina, sentada na poltrona, sua mãe, Celeste, sentada na cadeira, e para a irmã, Maria Lúcia, em 1966 Imagem: Reprodução/Revista do Esporte, Rio de Janeiro, n. 360, 1966, p.21.

Itan Cruz*

Colunista do UOL

15/02/2023 04h00

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Em algum momento entre a segunda metade do século 19 e o começo do século 20, Franklin Américo de Menezes Dória, barão de Loreto, registrou em um livro de memórias a ascendência de sua família, contando cerca de dez gerações anteriores, que remontavam aos tempos do Brasil colônia.

Homem negro, abastado e político do Império, ele assim descreveu parte de sua ascendência: "Meu pai nasceu a 19 de junho de 1811. Filho do capitão Inácio Francisco de Menezes Dória e de Dona Maria Francisca de Assis Dória. Minha mãe nasceu a 5 de fevereiro de 1815. Filha do capitão João Francisco de Menezes Dória e dona Maria de Araújo Cortês Dória. (...) Meus pais casaram-se no dia 5 de fevereiro de 1832: foram testemunhas do ato José Jacombe Dória e o coronel Antonio Diogo de Sá Barreto, assistido ao mesmo ato muitas outras pessoas."

Tal registro é uma excepcionalidade entre os documentos que se conservam nos arquivos. Ainda mais em se tratando de uma pessoa negra. Franklin era um homem letrado e de uma família importante, o que ajuda a explicar a particularidade da genealogia em seus escritos. Sua cor, no entanto, dependia da transmissão de uma memória familiar, já que não se tornou evidente na árvore genealógica traçada pelo barão.

Como aprendemos a lembrar e esquecer a cor?

Quando uma pessoa notável falece, é muito comum que os meios de comunicação destaquem suas trajetórias desde a origem familiar até a consagração da pessoa homenageada. Quando estas pessoas são negras, também é muito comum falar de um passado de dificuldades, com famílias sem recursos e com muitos empecilhos estruturados pelo racismo, nem sempre reconhecido. Esses elementos são usados nas narrativas para realçar aqueles que faleceram, muitos dos quais eram negros solitários em seus lugares de atuação, como já discutiu Patrícia Alves-Melo.

Em se tratando de pessoas negras longevas, tal qual Elza Soares e Pelé, suas trajetórias comumente denotam uma proximidade com o passado escravista brasileiro. Os 135 anos que nos separam dos grilhões da escravidão transmitem uma falsa sensação de que se trata de um passado muito distante.

Ao receber o título de doutora honoris causa na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2019, Elza Soares afirmou:

Vocês não sabem o que esse espaço significa para mim. Eu queria que significasse para todas e todos nós, negros. Eu sou bisneta e neta de escravos. A minha bisavó Henriqueta foi uma escrava. A minha avó, Cristina, foi uma escrava e a minha mãe, Rosária, pegou o final da escravatura. Estou aqui representando elas com muito orgulho.

Pelé declarou em sua autobiografia, publicada originalmente em 2006, que sua avó paterna, Ambrosina, falecida aos 97 anos, em 1976, pertencia à primeira geração de sua família a ter nascido livre. Ano passado, em 2022, Glória Maria, ao contar sua história familiar ao podcast Mano a Mano, do Mano Brown, afirmou que a sua avó paterna, dona Alzira, "dizia que o bisavô dela tinha sido laçado nas matas de Minas Gerais", como escravizado.

Ao contrário de Franklin, quantas e quantos de nós saberiam os nomes dos seus antepassados ou ainda dizer algo a respeito de suas características e gostos particulares? Quantos e quantas de nós saberiam daquilo que lhes tornariam singulares como expressão de sua humanidade?

Antirracismo e direito à memória e à vida

A possibilidade de conhecer detalhes e ouvir minúcias sobre a vida dos nossos antepassados, por meio de algum parente mais velho, pode parecer corriqueiro entre as famílias brancas, que puderam conservar aquele passaporte de algum avô italiano, a certidão de nascimento de um bisavô português ou a fotografia do trisavô espanhol. Ou mesmo têm chance de encontrar facilmente tais documentos em arquivos públicos. Mas, entre famílias negras, estas informações têm sido inviabilizadas por conta de uma relação sistemática entre o racismo e o direito à memória.

Esse exercício de conhecimento e rememoração partilhado pelas pessoas negras tem sido constantemente ameaçado principalmente por dois motivos: a crença sobre a inexistência de documentos e a sensação da irrelevância de nossas vidas.

O primeiro deles está relacionado à precariedade da conservação dos documentos referentes aos nossos antepassados. Um exemplo que consiste numa espécie de mito foi a ordem expedida por Rui Barbosa em 1890, então ministro da Fazenda, para que se queimassem todos os documentos relativos à escravidão. Na verdade, somente parte dos livros de matrículas de pessoas escravizadas foram incinerados. Estes documentos poderiam ajudar a reconstituir laços de parentescos e linhagens familiares, revelando nome, cor, idade, naturalidade, ofício e outras informações dos matriculados.

A medida foi provavelmente inspirada pelo senador José Antonio Saraiva, que já sugeria a queima dos documentos em 1888, "para que no futuro ninguém soubesse quem foi escravo no Brasil". A incineração de parte destes documentos foi um esforço de Rui para dificultar que os ex-senhores tentassem pleitear indenização do Estado por conta da abolição em 13 de maio de 1888. Mas não só isso. Foi também uma tentativa de construir uma política de memória, pautada no esquecimento da escravidão, disfarçado pela frágil impressão de igualdade e concórdia entre os brasileiros sob a República nascente — República cujo o hino entoava que "nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país".

Soma-se a este descaso as imprecisões que muitas vezes sobrevivem com os relatos familiares, essencialmente orais e dependentes das dúvidas, lacunas, esquecimentos e lembranças dos que os contam.

O segundo motivo diz respeito ao próprio direito à vida. A população negra ainda hoje é a que mais morre de forma precoce e violenta. Num país racista como o Brasil, envelhecer é um privilégio majoritariamente de pessoas brancas. A cada 23 minutos um jovem negro é morto no país, de acordo com os índices recolhidos pelo Mapa da Violência. A população negra ainda é a que mais sofre com desemprego, insegurança e falta de educação e saneamento, segundo o IBGE.

Livros de batismo, casamentos e óbitos, testamentos, inventários, processos-crimes, ações de liberdade, entre outros documentos, têm auxiliado historiadores há décadas na escrita da História sobre pessoas negras. Ainda assim, a despeito da imensidão desses documentos, há certos limites evidentes no que se refere à identificação de linhagens familiares contínuas. Aí também estão presentes as inúmeras "diásporas" internas, nas quais migrantes humildes, analfabetos, sem documentos e outros registros, buscavam lugares melhores para reconstruir suas vidas. Estes são alguns elementos que tornam difícil a tarefa conectar trajetórias dos tempos da escravidão até os dias atuais.

Pessoas negras hoje malmente sabem quem foram seus bisavôs. Dificilmente saberiam dizer se suas bisavós tinham algum santo de devoção, se sabiam falar outra língua além do português, se gostavam de algum prato em especial, se tinham alguma música preferida. Talvez as bisavós ou trisavós de Elza Soares, Pelé e Glória Maria poderiam ter sido mulheres como Petronilla, que em 1864, na Bahia, alegou ter comprado sua liberdade, jóias em ouro, tecidos e gado com o dinheiro que acumulou vendendo mingau de milho.

Saber quem foram os nossos ancestrais para além dos nomes ou dos lugares imprecisos de nascimento é um exercício sobre o passado para reconhecer a humanidade dos que nos precederam. Isto nos tira da massa homogênea e uniforme de um passado escravista que tentou aniquilar as nossas singularidades. Sentar ao pé dos mais velhos e ouvir sobre nossas origens é um ato de resistência contra o esquecimento projetado por um país que tenta nos matar, simbólica e fisicamente.

*Itan Cruz é doutor em História pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), mestre em História pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e autor do livro "Jogo de Damas - Amanda Paranaguá: memória, baianismo e poder na Corte do Brasil e além (1849-1931)" (Edufba/Eduefs, 2022). Desenvolve pesquisas sobre política no Brasil Império, escravidão, liberdade, abolição, criminalização da população negra, pessoas negras livres de elite do Brasil Império, gênero e história visual.