Topo

Presença Histórica

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que o racismo não poupa nem crianças?

Retrato de mulher com criança no colo, em 1910. - Vincenzo Pastore/Acervo Instituto Moreira Salles
Retrato de mulher com criança no colo, em 1910. Imagem: Vincenzo Pastore/Acervo Instituto Moreira Salles

Itan Cruz*

Colunista do UOL

22/03/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

No último dia 10 de março veio a público o caso de uma criança negra que, ao ser atendida por uma médica, em Feira de Santana, na Bahia, teria sido perguntada pela profissional se ela seria "filhote de um urubu ou macaco". Denúncias como essa não podem passar despercebidas. É preciso que haja afrontamento à banalização destes casos e à tentativa de sua naturalização mediante a apatia de certos setores da sociedade.

Sendo adjetivado ou não como estrutural, fato é que o racismo coloca em risco até mesmo a segurança de crianças negras no período da gestação. O anúncio da chegada de um bebê negro frequentemente é acompanhado de comentários racistas camuflados em preocupações: "Será que vai nascer muito escuro?"; "O cabelo tem chance de ser bom, né?" ou "Tomara que o nariz puxe o do avô e venha mais fino".

Esses e outros traços fenotípicos são alvo de apreensões que afetam diretamente mães que nem sempre estão preparadas para defender a si e seus filhos e filhas. Desde a gestação, crianças negras experimentam da violência, que infelizmente continuarão a ser alvos no mundo exterior. Em diversas religiões, as crianças são símbolos de pureza, bondade e alegria, encarnando, por vezes, o próprio Sagrado.

O pequeno Moisés, sobrevivente da perseguição aos hebreus, para o judaísmo; o Menino Jesus, símbolo de salvação para o catolicismo; os Ibejis e Erês, crianças poderosas celebradas no candomblé e na umbanda. A infância, como conhecemos hoje, ainda é, em grande parte, produto de uma invenção burguesa, baseada na ideia de dependência dos indivíduos e que, num país escravista, foi altamente racializada, expondo diferenças de tratamento entre crianças brancas e pretas. Não é de hoje que os pequeninos negros sofrem violências diversas.

Em 1881, como demonstraram as pesquisas de Celso Castilho e Camillia Cowling, uma escravizada chamada Maria, moradora do Recife (Pernambuco), escreveu a um abolicionista implorando uma quantia em dinheiro para completar suas economias e comprar sua liberdade. Maria desabafou ao destinatário que ele não poderia nem "imaginar como vivo nessa casa, observando meu senhor bater em minhas três filhas libertas e chamá-las de escravas, sem nada poder fazer".

O historiador Jailton Lima Brito evidenciou que, em 1886, o padre João Gonçalves de Sena, de Mata de São João, na Bahia, escreveu às autoridades provinciais denunciando alguns senhores de sua paróquia que se recusavam a pagar pelo sepultamento das crianças livres, filhas de suas escravizadas, que morreram ainda na infância. Um destes homens afirmou ao sacerdote "que cobrasse do governo; outro mandou-me dizer que mandasse sepultar o ingênuo fora do cemitério porque ele não pagava nada, e que não podia estar gastando dinheiro com filhos ingênuos".

Os dois episódios apontam como muitos senhores estavam inconformados com a possibilidade (frustrada) de uma infância livre para crianças negras nos tempos da escravidão.

Os dois casos trazidos aqui tratam da inconformidade dos senhores com a condição jurídica - e só jurídica mesmo - de crianças negras livres a partir de 28 de setembro de 1871, com a chamada Lei do Ventre Livre. Segundo pensavam, os pequenos não seriam dignos da liberdade, da cidadania. Se no primeiro caso, as filhas de Maria eram torturadas e chamadas de "escravas" - numa tentativa de subjugar as crianças à escravidão e à autoridade senhorial -, no segundo caso, os senhores protestavam contra crianças mortas, - quiçá eles mesmos tenham provocado suas mortes -, por não se conformarem com sua liberdade.

Se negando a pagar pelo sepultamento dos pequenos, estes senhores procuravam puní-los para além da vida, negando-lhes a dignidade de um enterro, garantidor, na fé cristã, do descanso espiritual. Isso sem contar as milhares de crianças nascidas livres mesmo antes da dita Lei do Ventre Livre, que estavam expostas a toda a sorte de precariedade de vida, explorações, criminalização das leis e suspeições policiais.

Na falta da escravidão, que estruturou a sociedade brasileira, a constante e cruel reatualização do racismo não poupou os pequenos. Seja pela suspeição, preterição, exclusão, ofensas diretas ou veladas, na violência ou mesmo na negação da humanidade, o racismo procura sujeitar indivíduos negros, não importando suas idades.

Recentemente, em julho de 2022, Titi e Bless, filhos de Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso foram vítimas de racismo em Costa da Caparica (Portugal), quando foram insultados por uma mulher num famoso clube do lugar. Em fevereiro deste ano, um casal denunciou a funcionária de uma loja em Belo Horizonte por crime de racismo porque esta teria acusado sua filha, uma menina negra de 9 anos de idade, de ter roubado um item para o cabelo. A criança, que estava acompanhada de sua irmã mais velha, de 23 anos, teria sido constrangida na frente de outros clientes do estabelecimento.

Episódios racistas, envolvendo crianças negras, expõem como as desigualdades raciais são operadas desde muito cedo, tentando demarcar posições edificadas ainda na escravidão. O objetivo destes ataques é tentar inserir nos seus alvos vulneráveis - e muitas vezes indefesos -, através do trauma, uma espécie de disciplina racista baseada na intimidação, na ridicularização e na violência.

A frase da poetisa mineira, Nívea Sabino, "não era timidez, era racismo", demonstra muito do que nós negras e negros percebemos ao olharmos para trás, para a nossa infância. Aquele coleguinha que se recusava a brincar com a gente, "brincadeiras" com nossas características físicas, os olhares adultos de reprovação sobre nossos cabelos e penteados, seguranças que nos seguem pelos corredores, etc.. São muitas as histórias envolvendo o racismo que qualquer pessoa negra pode contar sobre sua infância.

Neste contexto de conhecimento do mundo, no qual as crianças desenvolvem parâmetros, sensações, ideias e questionamentos, é fundamental que elas possam ter referências capazes de combater investidas racistas. Ao defender as cotas raciais no plenário do STF (Supremo Tribunal Federal), em 2012, a procuradora Indira Quaresma ressaltou a importância da representatividade para as crianças negras: "O que nós não podemos mais é sermos minados em nossa autoestima. E é isso que o racismo brasileiro faz. Ele faz nós duvidarmos da nossa capacidade desde pequenos. Ele derruba as crianças negras dos bancos escolares".

Há poucos anos, era quase inexistente a presença de heróis e heroínas negras, referências com as quais as crianças poderiam se identificar. Só recentemente, com maior força, é que apresentadores, jornalistas, escritores, médicos, engenheiros, juristas negras e negros têm alcançado maior visibilidade e têm ampliado sua influência sobre crianças pretas mostrando-lhes outras possibilidades que não a baixa-autoestima tão propagada em investidas racistas faladas ou não. Isto porque o racismo não opera somente no âmbito do que é dito. No Brasil, onde o silêncio racializado é eloquente, a ausência tem muito a dizer.

No próximo dia 22, a campanha "21 Dias de Ativismo Contra o Racismo!", que tem seu ponto alto no dia 21 de março, Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, instituída pela ONU (Organização das Nações Unidas), termina, mais uma vez, enfrentando a naturalização do racismo. Naturalização esta que vulnerabiliza ainda mais a vida das crianças negras.

Além disso, o Plano Juventude Viva está sendo retomado pelo Governo Federal, por meio do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, a fim de minorar a vulnerabilidade dos jovens, principalmente negros, "em situações de violência física e simbólica". A luta contra o racismo começa cedo e deve ser pactuada por todos nós. Pais, irmãos e coleguinhas brancos também precisam estar preparados para amparar, apoiar e defender seus filhos, irmãos e coleguinhas pretos de quaisquer violências raciais. Uma infância feliz é uma infância livre, e uma infância livre é uma infância sem racismo.

*Itan Cruz é doutor em História pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), mestre em História pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e autor do livro "Jogo de Damas - Amanda Paranaguá: memória, baianismo e poder na Corte do Brasil e além (1849-1931)" (Edufba/Eduefs, 2022). Desenvolve pesquisas sobre política no Brasil Império, escravidão, liberdade, abolição, criminalização da população negra, pessoas negras livres de elite do Brasil Império, gênero e história visual.