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Histórias de mulheres negras domésticas: 'que eu fale, não as cicatrizes'

Trabalho doméstico - Paula Plim / Arte UOL
Trabalho doméstico Imagem: Paula Plim / Arte UOL

Colunista do UOL

17/05/2023 04h00

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Contar as histórias a partir das costas, e não pelas cicatrizes ou pelos chicotes. Essa foi uma das sínteses da fala do ator, escritor e sambista Haroldo Costa, em sua participação na 13ª edição da Festa Literária das Favelas, no Rio de Janeiro, no sábado (13), dia em que também completou 93 anos. O pensamento do mestre é o mesmo do que os mais jovens talvez conheçam pela canção de Emicida quando diz: "permita que eu fale, não as minhas cicatrizes".

A reflexão trazida em pleno 13 de Maio, no marco dos 135 anos da abolição da escravidão no Brasil, e no evento que também fez grande homenagem ao legado da ialorixá Mãe Beata de Iemanjá, nos permite uma conversa-reflexão sobre as vivências de trabalhadoras domésticas negras, mulheres que, além de serem marcadas pela cor da pele, o eram também pela posição social. Mulheres, sempre às costas de suas patroas, que eram colocadas como "parte da família", mas efetivamente de costas, escondidas nos quartos minúsculos que ainda hoje compõem nossa arquitetura definitivamente guiada pela lente colonial, ainda que fossem as responsáveis por praticamente todos os afazeres dentro das residências.

Antes que eu esqueça, faziam [e fazem] isso já em tempos de liberdade. Afinal, o mês de maio aciona os tempos de liberdade, e se o ponto de vista é das costas, o contexto histórico dessas linhas é o da liberdade.

Trabalhadoras domésticas organizadas

Em 18 de maio de 1950 foi fundado na cidade do Rio de Janeiro, então capital do país, o Conselho Nacional das Mulheres Negras. Dentre as fundadoras, mulheres que compunham o TEN (Teatro Experimental do Negro), do qual Haroldo Costa fez parte e, não à toa, nos conduz na reflexão aqui desenvolvida. A organização se diferenciava da maior parte das existentes até então e, pretendia defender os direitos de mulheres que, assim como as fundadoras, eram em sua imensa maioria trabalhadoras domésticas.

Ainda que os 80 anos da Consolidação das Leis Trabalhistas sejam bastante celebrados por trabalhadores e trabalhadoras, esse grande avanço deu as costas para a massa de trabalhadoras domésticas. Elas não foram contempladas pela CLT. E demorou muito tempo para que o fossem, o que ocorreu tão somente em 2013 com a chamada PEC das Domésticas. Então, enquanto celebramos os 80 anos da CLT, comemoramos apenas uma década da proposta de emenda constitucional que finalmente incluía as trabalhadoras domésticas no acesso aos direitos básicos profissionais.

Laudelina de Campos Mello - Wikipedia - Wikipedia
Laudelina de Campos Mello
Imagem: Wikipedia

Mas, como evoca um lema do movimento de mulheres negras no Brasil, "nossos passos vêm de longe". E esses passos percorridos por mulheres em luta pelos seus direitos encontram no Conselho Nacional das Mulheres Negras uma de suas raízes que, em termos de organização coletiva formalmente reconhecida, está entre as mais longínquas. Outra raiz encontra-se no Sindicato das Trabalhadoras Domésticas, fundado em Santos, no litoral paulista, em 1936, e que não tardou a encontrar correspondentes em cidades do sul e nordeste, como Porto Alegre e Recife, mas também no Rio de Janeiro e São Paulo.

É justamente na organização de Santos que se destaca aquela que viria a ser uma importante liderança na defesa pelo direito das trabalhadoras domésticas, Laudelina de Campos Melo. Mineira de nascimento, começou a trabalhar ainda na infância, e ainda jovem engajou-se em espaços associativos, o que lhe conferiu experiência na luta organizativa e também a aproximou de mulheres que compartilhavam vivências semelhantes.

Fez do trabalho doméstico sua profissão por quase quarenta anos e manteve-se ativa no sindicato por praticamente toda a vida, engajada na proteção das trabalhadoras inclusive quando estas não tinham mais condições de trabalhar e, não raras vezes, passavam a viver em situação de rua, como bem explicitam as pesquisas da historiadora Lúcia Helena Oliveira Silva.

No intuito de conferir visibilidade para as redes de mulheres negras que lutaram pelos direitos das empregadas domésticas, mas também para que possamos observar como essa experiência alcança diferentes regiões do país e perpassa um longo período, trago aqui a trajetória de Ernestina Pereira. Nascida no fim dos anos 1960 em um quilombo localizado no extremo sul do Brasil, denominado Quilombo do Algodão, fez do trabalho e do ativismo junto à Associação Pelotense das Empregadas Domésticas sua luta, como bem pontua a pesquisa da socióloga Carla Ávila.

Essas organizações não tardaram a se organizar em rede, como a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, atualmente com importância fundamental no cenário político de garantia de direitos. Essa luta organizada tem sido fundamental para efetivar cobranças e fiscalização junto ao Estado nacional, no que tange fundamentalmente às condições análogas à escravidão e informalidade em que muitas e muitos trabalhadores domésticos se encontram.

De acordo com dados do IBGE, a cada quatro trabalhadoras domésticas, três estão na informalidade, ou seja, não têm carteira assinada. Os números são de fato alarmantes, e, na série histórica desde a aprovação da PEC, ou seja, nos últimos dez anos, o número de cerca de seis milhões de trabalhadores e trabalhadoras, sendo que a maioria expressiva de 92% são mulheres, apresentou um crescimento que oscilou brevemente em torno dos quatro milhões na informalidade, e, infelizmente, apresentou decréscimo apenas em 2021, muito mais em função da pandemia, que eliminou postos de trabalho, do que pelo acesso à formalização.

No que tange a precariedade do trabalho, não podemos deixar de mencionar o registro relativo a primeira morte por Covid-19 no Brasil, da empregada doméstica Cleonice Gonçalves, que provavelmente contraiu o vírus de sua patroa.

O ator, jornalista, escritor e sambista Haroldo Costa, 91, na Flup de 2022. - Daniele Dutra/UOL - Daniele Dutra/UOL
O ator, jornalista, escritor e sambista Haroldo Costa, 91, na Flup de 2022.
Imagem: Daniele Dutra/UOL

Já no que tange ao trabalho análogo à escravidão, a luta se concentra na conscientização da sociedade para que as denúncias sejam efetivadas. Tanto o grupo que atua em prol da Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas quanto o de Fiscalização Móvel, vinculados ao Ministério do Trabalho e Emprego, destacam como as mulheres, sobretudo negras, permanecem invisibilizadas nas ações, fundamentalmente em decorrência de serem crimes que ocorrem dentro das casas e por longo período.

No entanto, os números de resgate têm crescido desde 2021, e não são raros os casos como o da trabalhadora recentemente resgatada na cidade de Canoas, região metropolitana de Porto Alegre, após 47 anos de trabalho doméstico sem qualquer remuneração.

Temos muito o que avançar! Atentar para as tantas histórias que advém dessas mulheres que, aos moldes de Ernestina Pereira advertem que o trabalho doméstico é uma continuação da escravidão, tem muito a nos ensinar. Intelectuais e ativistas como Lélia Gonzalez e Luiza Bairros explicitaram isso em suas produções.

Como nos convocou Haroldo Costa, façamos dessas experiências o eixo pelo qual olhamos para a história da sociedade brasileira, conferindo especial atenção para as vozes e não para as cicatrizes.