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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Luiz Gama ajuda a entender como novo ensino médio não soluciona violência

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Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

12/04/2023 04h00

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Essa é uma coluna assinada por historiadoras e historiadores. Nosso ofício nos permite dizer que na história não há espaço para coincidências. Duas das discussões que pautaram a última semana nos noticiários aguçam esta reflexão: a suspensão do NEM (Novo Ensino Médio) e as violências que alcançam nossos espaços educacionais.

Ao lado da dor e da revolta com episódios como o que ocorreu na cidade de Blumenau (SC) ou que tirou a vida da professora Elizabeth Tenreiro em uma escola paulista, vale lembrar, dentre muitos exemplos, a trajetória do hoje bem lembrado Luiz Gama.

Conhecido pela sua atuação enquanto abolicionista, este homem que viveu as dores do cativeiro na própria pele, fez-se livre a partir de si mesmo e auxiliou para que centenas de pessoas escravizadas ilegalmente alcançassem a liberdade. Mas o fez não a partir do título de bacharel em direito, e sim enquanto rábula, uma espécie de advogado prático, o que poderíamos denominar hoje como um conhecedor técnico da jurisprudência. Isso porque ao que as pesquisas históricas apontam, o título de bacharel se fez impossível para ele.

Como a pesquisa de Ana Flávia Magalhães Pinto destacou, a trajetória de Luiz Gama está longe de fortalecer a meritocracia. Por certo, nos oferece elementos para refletirmos acerca das exceções que confirmam regras, ou, como sujeitos alcançados pela exclusão contornaram contratempos de toda a ordem e foram alcançados por eles sem que isso corroborasse necessariamente com o isolamento.

Luiz Gama por volta de 1880. - Domínio Público - Domínio Público
Luiz Gama por volta de 1880.
Imagem: Domínio Público

Mas o que a história de Luiz Gama tem a ver com as discussões que envolvem o NEM atualmente, ou mesmo, com a violência que tem alcançado os ambientes escolares de forma cada vez mais brutal nos últimos tempos? Muito! E para desenrolar esse fio precisamos compreender alguns meandros das proposições contemporâneas.

O Novo Ensino Médio foi criado a partir de uma medida provisória assinada pelo então presidente Michel Temer em 22 de setembro de 2016, o prazo para sua entrada em vigor é o ano corrente e deve estar completamente em execução até 2024, quando atingirá também o Enem. E, como destacado quando de sua publicação, é a maior mudança na nossa educação básica desde que foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, em 1996.

Além de aumentar as horas na escola, a principal alteração encontra-se na possibilidade de estudantes escolherem os denominados percursos formativos que desejam cursar, o que lhes conferirá contato com áreas de conhecimento e formação técnica e profissional. A princípio o projeto pretende incrementar as possibilidades dos alunos, mas é justamente aí que o gargalo se impõe.

É sabido que as estruturas de nossas escolas públicas estão muito longe do ideal e a reforma incide diretamente sobre o contato com disciplinas que visam desenvolver a criticidade, como a história e a filosofia, por exemplo, ao mesmo passo que apesar de viabilizar percursos relacionados às ciências, muitas escolas não dispõem de elementos básicos, como laboratórios devidamente equipados.

Aquela história do rábula que marcou a experiência de Luiz Gama, encontra aqui uma continuidade: como jovens oriundos de escolas públicas que pretendem, ou que minimamente poderiam se ver na universidade pública, terão acesso às condições para tal?

Cabe destacar, por exemplo, que o atual edital do concurso público para professor de educação básica do estado do Rio Grande do Sul sequer abriu vagas para professores de história e filosofia. Essas disciplinas oferecem elementos para que os alunos possam refletir sobre quem somos enquanto nação e o que almejamos ser.

E, dentre as discussões observadas nos currículos, está a violência e o convívio com o diferente. Assim, além de excluir essas discussões dos percursos formativos, visto que não haverá profissional habilitado para tal, acarreta ainda um déficit enorme na discussão qualificada acerca do lugar da violência na nossa sociedade. Isso perpassa desde conteúdos fundamentais da história como os efeitos das guerras, do nazifascismo, da conformação dos racismos e das ditaduras civis-militares, até as discussões que contemplam a reflexão ética, as relações entre ciência e tecnologia, barbárie, cidadania e democracia, dentre outros temas da filosofia.

Essa especificidade do governo do Rio Grande do Sul bem pode se espalhar pelo país e está plenamente alinhada com uma manutenção da exclusão de determinados perfis de alunos do acesso às melhores condições de ensino e educação. Mas, ainda pior, impede que nossos jovens possam despir-se de pré-conceitos acerca do outro, daquele que é visto como diferente, ou mesmo das reflexões acerca do que nos coletiviza enquanto um todo e não enquanto seres apartados.

Pensar a nação sempre foi uma tarefa árdua, mas na forma como está posto, o que se avizinha aponta para a ênfase nas habilidades individuais. Como poderemos reformular nosso projeto de nação alinhadas com uma perspectiva que exclui e inviabiliza discussões fundamentais para aquilo que nos faz cidadãs e cidadãos comprometidas e comprometidos com o bem-estar pessoal e do outro? Como poderemos combater a violência por dentro se sequer discutiremos sobre ela de forma ampla?

Essas são reflexões que me inquietam, mas ouso aqui convidar a quem nos lê a atentar para as conexões e não para os isolamentos. Quem sabe assim caminhamos de fato para a construção de uma nação que preza pela igualdade nas oportunidades, combate à violência também a partir das escolas e valoriza nosso futuro, por meio dos nossos jovens, e nosso presente, por meio das professoras e professores que estão nesse front de luta há bastante tempo.

Temos 60 dias para aprofundar essas discussões. Que façamos isso! A educação é fundamental para a nação brasileira, então ela não pode ser esvaziada de forma alguma. É por isso que hoje quero lhes convidar a pensar tendo em mente uma lição que nos é ensinada constantemente por mulheres negras que permanecem em luta pela justiça social e que se fez título de uma reflexão da socióloga estadunidense Patricia Hill Collins: "Nós que acreditamos na liberdade não podemos descansar".