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Caso Vini Jr.: história espanhola explica racismo naturalizado no país

Vinicius Junior, atacante do Real Madrid, durante o jogo contra o Valencia, no Mestalla - Mateo Villalba/Getty
Vinicius Junior, atacante do Real Madrid, durante o jogo contra o Valencia, no Mestalla Imagem: Mateo Villalba/Getty

Itan Cruz

Colunista do UOL

24/05/2023 13h07

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Não é de hoje que atletas negros são alvo de ataques racistas dentro ou fora do futebol. Ginastas como Simone Biles, Daiane dos Santos e Angelo Assumpção, jogadoras de vôlei como Paola Egonu e Fabiana, jogadores de futebol como Mbappé, Neymar e até mesmo Pelé passaram pela dor causada por ofensas racistas. O caso do jogador do Real Madrid Vinicius Jr. chama a atenção para uma prática recorrente, sistematizada e estruturada desses episódios. Mais do que isso, aponta como países colonizadores, a exemplo da Espanha, precisam urgentemente rever seu passado colonizador e reelaborar seu pacto com a civilização contemporânea.

Desde, pelo menos, 2021, Vini Jr. vem sendo atacado explicitamente nos jogos em que atua. Apesar das denúncias apresentadas pelo atleta, o sistema judiciário espanhol aparenta alimentar certa inação sobre os casos, o que em última instância significa uma autorização para que os racistas continuem praticando crimes. Estamos falando do penútimo país a abolir a escravidão em suas possessões, uma vez que Cuba foi colônia espanhola até 1898 e teve sua abolição apenas em 1886, pouco menos de dois anos antes da chamada Lei Áurea de 1888, aqui no Brasil. Mas não é só isso. A Espanha traz consigo uma sucessão de elementos racializados que contribuem para que investidas racistas sejam naturalizadas e acomodadas com uma pactuação estatal.

A Espanha do santo que matava mouros e indígenas

Em finais de maio de 844 o rei Ramiro 1º, do reino de León, atual norte da Espanha, empreendeu uma batalha contra os muçulmanos que haviam se expandido pela Península Ibérica desde o século 8 e se manteriam por lá até o século 15. A cristandade espanhola, que havia se refugiado ao norte da península, combatia em direção ao sul, na tentativa de restaurar seus territórios. Foi num desses conflitos de reconquista contra as tropas do califa Abderramán 2 que os espanhóis afirmam ter visto São Tiago, apóstolo, montado num cavalo branco e guerreando pelos cristãos contra os "mouros", que, em considerável parte, tinham como origem o norte da África.

Não à toa a palavra "moreno" deriva de "mouro", referência aos traços dos islamitas, os quais não eram todos "morenos", embora muitos o fossem. Foi assim que surgiu o título "Santiago matamouros", padroeiro de toda a Espanha até hoje, mas agora sob os epítetos "Santiago Maior", ou "Santiago de Compostela", celebrado no dia 25 de julho.

Pintura de Lucas Valdés Carrasquilla intitulada Santiago Matamoros, de 1690, em exposição no Museo de Bellas Artes de Sevilla, na Espanha. - Lucas Valdés Carrasquilla / Reprodução - Lucas Valdés Carrasquilla / Reprodução
Pintura de Lucas Valdés Carrasquilla intitulada Santiago Matamoros, de 1690, em exposição no Museo de Bellas Artes de Sevilla, na Espanha.
Imagem: Lucas Valdés Carrasquilla / Reprodução

Esse mesmo Santiago tomaria outro título quando da colonização espanhola deste lado do Atlântico a partir do século 16, passando a se chamar "Santiago mataíndios". Evocação devocional dos colonizadores, ou melhor dizendo, invasores, para com o santo que teria o seu lugar em mais uma empreitada contra os "outros", desta vez, os indígenas. Sempre branco, com auréola reluzente, montado sobre um cavalo e com uma espada à mão, o apóstolo passou a endossar o projeto de Estado espanhol, tornando-se um dos seus símbolos nacionais mais relevantes.

Ao longo de toda a colonização nas Américas, os espanhóis também mostraram-se fortes concorrentes dos portugueses no infame tráfico de africanos escravizados. Inclusive a Coroa espanhola assistiu de perto a comercialização dessas pessoas quando teve o Brasil sob sua autoridade por 60 anos, ocasião na qual Portugal foi unificado à Espanha, na chamada "União Ibérica" (1580-1640).

A Inquisição espanhola, instaurada em 1478 e que só seria oficialmente abolida em 1820, também teve parcela na intolerância marcante na história da Espanha. O Tribunal do Santo Ofício, como também era denominado, torturou, matou e expulsou centenas ou milhares de judeus, indígenas e negros na Europa e nas possessões do império espanhol no além-mar.

Daqui pra frente

Pintura de autoria desconhecida intitulada "Santiago vence os incas" em exposição no Museo de Historia, em Lima (Peru). - Reprodução - Reprodução
Pintura de autoria desconhecida intitulada "Santiago vence os incas" em exposição no Museo de Historia, em Lima (Peru).
Imagem: Reprodução

Os insultos racistas desferidos contra Vini Jr. estão localizados nessa rede de elementos históricos que ajudam a compreender como um país colonizador se porta com tolerância ou conivência diante desses ataques. Pessoas como a jornalista que ignorou o caso de violência e insistia em perguntar a Carlo Ancelotti, treinador do Real Madrid, sobre o jogo, ou a postura nefasta do presidente da La Liga, Javier Tebas Medrano, em culpar o jogador, revelam a mais repugnante insensibilidade assentada sobre um país marcado pela reiterada agressão aos "outros", em especial a pessoas negras e imigrantes.

É óbvio que nem todos os espanhóis são racistas ou compactuam com o que vem acontecendo com Vini Jr.. No entanto, é necessário e urgente que as autoridades espanholas possam repensar o lugar do seu país no contexto das discussões sobre racismo, imigração, cidadania, dignidade humana e civilização. As punições devem existir e de forma exemplar, mas não devem ser as únicas medidas a serem tomadas.

É preciso que haja um empenho significativo na construção de políticas antirracistas que possam redefinir a postura de um país de passado explorador, co-responsável pela estruturação do racismo ao longo de séculos. Cabe ao governo espanhol e ao seu aparato de Justiça o conselho do Tiago, o apóstolo que não matava ninguém: "sejam praticantes da palavra, e não apenas ouvintes, enganando vocês mesmos" (Tiago 1, 22). A Vini Jr., deixo meu abraço e minha solidariedade.