Topo

Presença Histórica

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Marco temporal é genocídio legislado

Protesto indígena durante Acampamento Terra Livre em 2022, pela demarcação de terras indígenas e contra pautas antiambientais no Congresso - Mídia Ninja
Protesto indígena durante Acampamento Terra Livre em 2022, pela demarcação de terras indígenas e contra pautas antiambientais no Congresso Imagem: Mídia Ninja

Colunista do UOL

31/05/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

A pauta da mobilização geral convocada pela Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) para esta terça (30) foi uma só: todos contra a aprovação do Projeto de Lei (PL) 490/07 que institucionaliza o chamado marco temporal. Ou seja, só as áreas ocupadas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, é que serão consideradas nos processos de demarcação de terras.

A manifestação das guerreiras e guerreiros Brasil afora pretendeu chamar atenção da sociedade para o potencial devastador da medida sobre a vida dos povos indígenas. A deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG) tem usado uma expressão que resume bem o que se desenha no horizonte se tal tese prevalecer: "É um genocídio legislado". Ou seja, o Estado brasileiro vai institucionalizar o extermínio dos povos originários.

Faz tempo que a questão do marco temporal está na pauta do STF e deve retornar ao plenário agora em junho. Seu relator, o ministro Edson Fachin, já se posicionou contra a tese. Não vamos entrar nos meandros jurídicos, mas faz muito sentido dizer que a tentativa de aprovação do PL 490/07 é expressão de uma estratégia política para pressionar e, de certo modo, atropelar a decisão do STF. Porém, há muito mais em jogo.

Efeitos do marco temporal para povos indígenas

O PL 490/07 tramita há quase duas décadas e ao longo do caminho incorporou vários outros projetos na mesma direção. Além de regular o tal marco temporal, o que o PL propõe? Muita coisa.

O Ministério dos Povos Indígenas e dezenas de organizações têm feito leituras críticas acerca dos seus efeitos, já que pretende transferir a decisão das demarcações para o Congresso Nacional e restringir a ampliação das terras já existentes.

Célia Xakriabá, líder indígena, durante protesto realizado em Brasília, em 2019. - Pablo Albarenga/picture alliance via Getty Images - Pablo Albarenga/picture alliance via Getty Images
Célia Xakriabá, líder indígena, durante protesto realizado em Brasília, em 2019.
Imagem: Pablo Albarenga/picture alliance via Getty Images

A nova legislação quer ainda alterar a Constituição retirando dos povos indígenas o direito ao usufruto exclusivo de suas terras. Na prática, isso permitiria a implementação de um sem-número de obras de intervenção e de exploração dos territórios, sem a obrigatoriedade de consultar os povos que ali vivem.
Estamos falando de projetos de uso de recursos hídricos e de exploração de riquezas minerais sendo que tal permissão, nesse novo (e indesejado) cenário legal, seria dada pelo Congresso Nacional.

Bem, não é difícil imaginar que, nessas condições, setores ligados ao agronegócio, por exemplo, interessados na paralisação das demarcações e no acesso indiscriminado a esses territórios, têm mais chance de mobilizar bancadas em defesa de seus interesses em detrimento dos direitos dos povos indígenas.

O modo de marcar o tempo faz diferença

Fica evidente que o PL 490/07 representa uma inflexão radical e devastadora na vida dos povos indígenas no Brasil. Mas como surgiu essa ideia? Ela apareceu em 2009 em um parecer da AGU (Advocacia-Geral da União) quando estava em causa no STF a demarcação da Terra Indígena Raposa - Serra do Sol.

Ministra dos Povos Indígenas Sônia Guajajara - Amanda Perobelli/Reuters - Amanda Perobelli/Reuters
Ministra dos Povos Indígenas Sônia Guajajara
Imagem: Amanda Perobelli/Reuters

Um entendimento é que, como a Constituição estabeleceu que a União tinha um prazo de 5 anos a partir de sua promulgação para demarcar todas as terras indígenas, alguns juristas tomam isso como a expressão de um marco no tempo para definir essas áreas.

Ora, marcar o tempo é uma operação muito relevante para se construir uma história (ou uma narrativa, se preferirem). Não pode ser tomada como se fosse uma decisão "neutra" e nem tampouco absolutamente evidente. Trata-se sempre de uma escolha que fortalece as bases argumentativas de uma determinada narrativa histórica.

Nesse caso, é algo crucial porque não só define destinos de diferentes povos, mas também implica um imensurável conjunto de impactos na vida de toda sociedade. Estamos falando de desmatamento de florestas tropicais e de mudanças climáticas globais.

Tomar 1988 como a medida do tempo significa apagar histórias e minimizar processos longevos de expropriação de terras, de violência sobre os povos indígenas, além de ignorar suas relações ancestrais com os territórios que ocupam.

Como afirmou Eloy Terena, secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas, "a tradicionalidade é a forma como cada povo se relaciona com o seu território. Isso não tem nada a ver com o tempo, mas tem a ver com o modo de ocupação, o modo de relação de cada povo indígena com o seu território".

Importa ainda dizer que esse tal marco temporal é inconstitucional porque ignora o direito originário dos povos indígenas sobre suas terras, tese já reconhecida pela Constituição. A propósito, também não custa lembrar que as terras indígenas demarcadas são parte do patrimônio da União e, portanto, não são cabíveis argumentos despropositados que, de modo leviano, sugerem que seu reconhecimento coloca em risco a "soberania nacional".

A luta pela terra é a mãe de todas as lutas

Uma mulher atravessou a multidão reunida em um evento no Teatro Castro Alves em Salvador (BA). Era 11 de maio, dia da regulamentação da lei que trata do apoio do Governo Federal à área de Cultura, conhecida como "Lei Paulo Gustavo". Resoluta, ela trazia um papel nas mãos. Visivelmente emocionada, conseguiu alcançar o palco e ficou de joelhos diante do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Quilombo Rio dos Macacos diz que mulher que encontrou Lula é sua representante - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Quilombo Rio dos Macacos diz que mulher que encontrou Lula é sua representante
Imagem: Reprodução/Instagram

Com o apoio do presidente, ela se levantou de imediato. Seguiu-se um abraço e sua fala repercutiu na imprensa: "Nosso povo está morrendo, presidente!" O precioso papel foi entregue a Lula. A mulher decidida era Rosimeire dos Santos, reconhecida liderança do Quilombo do Rio dos Macacos (BA), que enfrenta uma luta sem trégua em defesa de seus territórios em uma área de tensão e em disputa com a Marinha do Brasil.

A atualidade e a simultaneidade das demandas das comunidades quilombolas e dos povos originários no tempo presente pela regularização de suas terras não são obra do acaso. O caso do Quilombo do Rios dos Macacos é só um exemplo entre muitos que poderíamos trazer aqui. Como já disse a ministra Sônia Guajajara, "a luta pela terra é a mãe de todas as lutas", uma fala emblemática por acentuar a centralidade desse enfrentamento como eixo essencial no tempo presente. Os atravessamentos ficam evidentes.

É certo que a batalha pela terra é central, mas ela também ecoa histórias antigas de expropriação e extermínio que não podem ser esquecidas. O Estado é, mais uma vez, um dos protagonistas do confronto. Isso diz muito sobre as histórias que se repetem nesse país e seus inúmeros "marcos temporais" acionados, invariavelmente, na perspectiva da exclusão e da retirada de direitos da maioria da população brasileira.