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Leão de Ouro de Arquitetura reforça valor de patrimônios negros e indígenas

Terreiro da Casa Branca, em Salvador, recebe primeira apresentação pública do prêmio Leão de Ouro da Bienal de Arquitetura de Veneza. - Fernando Batista
Terreiro da Casa Branca, em Salvador, recebe primeira apresentação pública do prêmio Leão de Ouro da Bienal de Arquitetura de Veneza. Imagem: Fernando Batista

Colunista do UOL

16/06/2023 04h00

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O que as pessoas são capazes de fazer tendo consciência da própria liberdade? O que tais ações podem significar quando se dão em contraponto a tentativas de negação dessa mesma liberdade por motivações injustas? Interessantes respostas a essas perguntas têm sido dadas há quase dois séculos pela comunidade do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, mais conhecido como Terreiro da Casa Branca, fundado na cidade de Salvador, Bahia, no início do século 19.

Não por acaso, no sábado de 10 de junho, a Casa Branca foi o território de inauguração das apresentações públicas no Brasil do Leão de Ouro, prêmio máximo da Bienal de Arquitetura de Veneza. Como é sabido e já bastante celebrado, esta é a primeira vez que o pavilhão brasileiro ganha a premiação iniciada em 1975, num desdobramento da Bienal de Arte, cujos primórdios remontam a 1895.

A Bienal de Arquitetura tem por objetivo "propor e mostrar soluções arquitetônicas para questões sociais, humanísticas e tecnológicas contemporâneas". A conquista brasileira, portanto, afirma a coerência com os propósitos. A começar por estar fundamentada no tema "Terra", assim definido graças à curadoria de Gabriela de Matos e Paulo Tavares, profissionais e ativistas da arquitetura.

A proposta questiona narrativas canônicas da área com base em referenciais indígenas e afro-brasileiros e acena com possibilidades de um entendimento mais generoso sobre a formação do território nacional e os patrimônios instituídos a partir de diferentes ocupações. Para tanto, a dupla contou com a parceria de uma equipe multidisciplinar, com formações que potencializam e mesmo extrapolam os limites dos saberes acadêmicos.

Mas onde o Terreiro da Casa Branca entra em tudo isso?

"Xangô, meu pai. Aqui está a transformação. Que esse ouro brilhe muito mais no nosso egbé. Essa grande conquista quem trouxe foi o senhor!". Essas foram algumas frases ditas por Mãe Neuza Cruz, a atual iyalorixá do Terreiro da Casa Branca, enquanto circundava a cumeeira antes de entrar no quarto de Xangô com a estatueta do Leão de Ouro no dia 10.

As pessoas amigas e integrantes da família de axé presentes sabiam qual transformação estava sendo evocada. Primeiro Monumento Negro considerado Patrimônio Histórico do Brasil e tombado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 1986, o Ilê Axé Iyá Nassô Oká vive mais um capítulo de resistência pela preservação de seu território. O tombamento, aliás, foi uma estratégia elaborada durante as lutas da comunidade contra a invasão promovida por um posto de combustíveis nas décadas de 1970 e 1980, período da liderança da Iyá Marieta Vitória Cardoso, a Oxum Niké.

Essas e outras histórias foram destacadas por Equede Sinha quando eu e Paulo Tavares fomos ao terreiro apresentar o projeto no início deste ano. Atualmente, a ameaça vem de outras obras particulares que estão comprometendo a integridade do complexo arquitetônico e das práticas socioculturais ali desenvolvidas, conforme noticiado pelo colunista do UOL André Santana em março.

Nesse sentido, a chegada do Leão de Ouro vem em momento oportuno e pode servir como catalisador de um novo episódio de reparação. Além de a violação ter sido abordada na expografia do pavilhão, o prêmio permite evidenciar outros patrimônios subdimensionados, como fica evidente na forma como Gabriela de Matos percebe esse cenário em sentido amplo:

"O projeto da Bienal de Veneza é um processo, e não só uma pesquisa construída apenas para esse contexto. Há muito tempo venho desenvolvendo uma investigação sobre arquitetura afro-brasileira, através das lentes de raça e gênero. Em 2018, criei o projeto Arquitetas Negras por meio do qual comecei a mapear a atuação dessas mulheres no Brasil. A partir disso, comecei a fazer uma retrospectiva com intuito de identificar quem foram as primeiras arquitetas negras brasileiras. Isso me levou a um entendimento mais expandido do que é arquitetura, o que, por sua vez, me conduziu à arquitetura de terreiro. O reconhecimento do Terreiro da Casa Branca foi inevitável, por sua condição pioneira e matriarcal. Interessante dizer que o contato mais próximo se deu pela força da coletividade, que conecta outras mulheres negras como você, que fez a ponte com Equede Sinha e Mãe Neuza; a cineasta Day Rodrigues, a arquiteta Vilma Patrícia Santana Silva, entre tantas outras".

Quando a terra dá caminho para a água e vice-versa

O provérbio africano que diz que "a água sempre descobre um meio" chama atenção para o fato de que a transposição de obstáculos é sempre uma possibilidade. Essa inspiração vinda das águas é bastante reverenciada nas comunidades de terreiro de candomblé e outras tradições de matriz africana no Brasil. Isso explica porque Oxum e Iyemanjá, divindades femininas associadas a esse elemento da natureza, têm sua importância atualizada ao longo das gerações.

Conta-se que a Casa Branca foi fundada a partir da liderança de três mulheres africanas, Iyá Detá, Iyá Akalá e Iyá Nassô. Outras pessoas, por certo, estiveram envolvidas, mas é preciso lembrar que, ao longo de todos esses anos, apenas mulheres negras estiveram à frente da comunidade. Na entrada do terreiro, a Praça de Oxum protege uma fonte de água sacralizada em memória das ancestrais.

Nesse espaço, diferentes temporalidades se articulam e se conectam com a agência de múltiplos indivíduos e coletividades comprometidas com a promoção do direito à vida com respeito e dignidade. Essa imagem de proximidade e continuidade ajuda a compreender como foi tão natural para Gabriela de Matos e Paulo Tavares juntar a trajetória das mulheres de axé na Bahia com as comunidades indígenas do Rio Negro no Pavilhão do Brasil em Veneza.

Com o apoio de Janete Alves Dessana, liderança da Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), Paulo Tavares percorreu os caminhos de água no estado do Amazonas que levam à mítica cachoeira de Iaueretê e garantiu a abordagem respeitosa de outro pilar da narrativa. Também com olhos de ver o que protagonistas de projetos de destruição ignoram, o arquiteto assim avalia a experiência:

"Esta região é certamente um dos territórios mais internacionais, mais cosmopolitas do mundo, contando com ao menos 23 povos indígenas e uma incrível pluralidade linguística e cultural. Junto com a Foirn, o pavilhão Terra apresentou um modelo digital do sítio arqueológico da cachoeira de Iaueretê, patrimônio indígena reconhecido pelo Iphan. Assim como o Terreiro da Casa Branca, patrimônios indígenas sagrados como Iaueretê estão sob constante ameaça de serem desfigurados por políticas que enxergam os rios da Amazônia apenas como recurso natural a ser explorado. Veja por exemplo o caso das hidrelétricas no Teles Pires, que destruíram as cachoeiras sagradas dos Munduruku. Equede Sinha disse que o Leão veio para defender o Território da Casa Branca, que vem sofrendo com processos predatórios de especulação imobiliária em Salvador. Esperamos que este prêmio também possa servir de instrumento na luta pela proteção dos territórios indígenas e de seus patrimônios sagrados como a cachoeira do Iaueretê".

Em tempos de tentativas no mínimo controversas de fazer avançar o PL 490, que tenta limitar a existência de terras indígenas por meio de um marco temporal genocida, seria emblemático ver esse Leão de Ouro chegar na Amazônia!