Topo

André Santana

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Terreiro de candomblé mais antigo do Brasil denuncia risco de desabamento

Obra irregular coloca em risco terreiro da Casa Branca, considerado o mais antigo do Brasil - Reprodução
Obra irregular coloca em risco terreiro da Casa Branca, considerado o mais antigo do Brasil Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

31/03/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

No dia do aniversário de 474 anos da capital da Bahia, Salvador, cidade reconhecida pela religiosidade do seu povo, recebeu de presente uma grave denúncia: o terreiro da Casa Branca, considerado o mais antigo templo de candomblé do Brasil, está sob a ameaça de uma construção irregular, que coloca em risco as pessoas e o patrimônio cultural e religioso mantido pela comunidade.

As denúncias que circularam nas redes sociais na quarta-feira (29) sobre o medo provocado por uma obra particular vizinha ao terreno da Casa Branca, no Engenho Velho da Federação, já haviam sido direcionadas, desde outubro de 2019, ao Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), órgão federal responsável por zelar por terreiros tombados, como é o caso da Casa Branca.

"Quando enviamos ofício ao Iphan só tínhamos a informação de que o terreno tinha sido comprado e que iriam começar a construir. Nesses mais de três anos, vários órgãos foram acionadas e nada foi feito para impedir a construção que atualmente possui cinco andares, com possibilidade de desabar em cima das casas dos orixás e das pessoas que circulam pelo terreiro", diz a advogada Isaura Genoveva, ekedi de Ogum, iniciada na Casa Branca em 1990.

Ekedi é o nome dado, nos candomblés de nação Ketu, às mulheres que não incorporam e exercem funções importantes na liturgia, como a arrumação e cuidado das divindades.

Obra irregular coloca em risco o terreiro da Casa Branca em Salvador: construção tem 5 andares - Reprodução - Reprodução
Obra irregular coloca em risco o terreiro da Casa Branca em Salvador
Imagem: Reprodução

A ekedi Isaura Genoveva conta que a situação de insegurança foi tornada pública em um evento realizado recentemente no terreiro para celebrar o Dia Nacional das Tradições de Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, comemorado pela primeira vez no Brasil em 21 de março deste ano.

"Foi um dia de celebração, mas também de denúncia e resistência", pontuou a advogada. A comunidade religiosa buscou dar visibilidade ao caso já que não encontrava efetividade junto ao sistema de Justiça e os órgãos públicos acionados, tanto da Prefeitura de Salvador, como também dos governos estadual e federal.

Tombamento federal não tem garantido a salvaguarda

O terreiro da Casa Branca, cujo nome em iorubá é Ilê Axé Iyá Nassô Oká, foi fundado no início do século 19 e, em 1984, tornou-se o primeiro templo religioso não católico a ser tombado como patrimônio histórico do Brasil. O tombamento abrange uma área de 6.800 m², que inclui edificações, árvores e objetos sagrados.

Juristas e religiosos se reuniram no Terreiro da Casa Branca para celebrar o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé - Reprodução / Instagram - Reprodução / Instagram
Evento na Casa Branca celebrou o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé
Imagem: Reprodução / Instagram

A comunidade reclama que nenhum órgão impediu que o edifício irregular fosse construído na parte de cima do espaço religioso, sem qualquer licenciamento e com risco de desmoronar. O que chama atenção é a inércia do poder público, que pode resultar em uma tragédia.

"Como patrimônio tombado, não podemos trocar uma telha no terreiro sem comunicar ao Iphan, que precisa autorizar e é responsável por zelar pelo templo. Não sabemos de nenhuma igreja católica tombada passando por essa mesma situação", reclama Isaura Genoveva, apontando o racismo religioso como causa do descuido por parte dos órgãos em relação às religiões de matriz africana. Situação que se agravou nos últimos anos —quando o Iphan foi acionado.

Não queremos nada de ninguém, queremos apenas a preservação de um patrimônio de valor incalculável para a história do Brasil e para a religiosidade do povo de axé. Se a Casa Branca passa por um risco desse, imagine outros templos do candomblé espalhados pelo país. Muitos não sabem nem onde fazer uma denúncia ou pedir ajuda."
Isaura Genoveva, advogada e ekedi

A advogada informa que em 2021 o Ministério Público da Bahia oficializou a situação para órgãos públicos como o Iphan, a Sedur (Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo), entre outros. O MP Bahia realizou audiências e inspeções e constatou a situação de risco da obra por não ter alvará de construção e nem projeto arquitetônico e estrutural.

Nenhuma medida de salvaguarda concreta e eficaz foi tomada e a construção seguiu, sem qualquer acompanhamento técnico, já tendo o imóvel sido utilizado para fins comerciais, como uma casa de shows.

Após repercussão, Prefeitura de Salvador interditou obra

Segundo nota publicada pelo terreiro, o Iphan alegou entraves internos para garantir a segurança do patrimônio sob os seus cuidados. O mesmo se refere também à Sedur, que, de acordo com a nota, confessou não ter tido êxito nas fiscalizações para o embargo da obra. "Uma confissão de culpa, conivência", informa o terreiro.

A yalorixá da Casa Branca (ao centro), Mãe Neuza de Xangô e a ekedi Isaura Genoveva (segunda da direita) dialogam com os especialistas em Direito: Ana Flauzina, Samuel Vida, Lívia Vaz Sant´anna e Hélio Santos  - Reprodução / Instagram - Reprodução / Instagram
A yalorixá da Casa Branca (ao centro), Mãe Neuza de Xangô e a ekedi Isaura Genoveva (segunda da direita) dialogam com os especialistas em Direito: Ana Flauzina, Samuel Vida, Lívia Vaz Sant´anna e Hélio Santos
Imagem: Reprodução / Instagram

Somente após a repercussão do caso nas redes sociais, a Prefeitura de Salvador, por meio da Sedur, informou que interditou a obra irregular, dia 29, após identificar material de construção no local. O órgão destacou, em nota, que a construção já havia sido embargada em setembro de 2022 por não possuir alvará de construção.

A Sedur informa ainda que, caso a obra não possa ser regularizada, poderá sofrer as sanções cabíveis, inclusive ser demolida, conforme prevê o Código de Obras do Município para obras iniciadas sem a devida licença, em áreas de domínio público ou que ofereçam iminente risco de desabamento.

Provocado sobre o caso no Twitter, o atual presidente do Iphan, Leandro Grass, afirmou que o órgão já havia tomado as medidas cabíveis, incluindo o embargo da obra e a judicialização do caso.

Em nota enviada à coluna, o Iphan informou que foram realizadas vistorias "tão logo ocorreram as primeiras denúncias sobre a construção". O instituto afirma que realizar obras na vizinhança de "coisa tombada", que impeça ou reduza a visibilidade, sem autorização, é uma infração administrativa.

Ainda na nota, o Iphan afirma que, em audiência no MPE/BA, em junho de 2022, o proprietário foi orientado pela órgão a não continuar com a construção, aguardando o prosseguimento dos trâmites processuais, visando solucionar a irregularidade.

A comunidade do Terreiro da Casa Branca e o Povo de Axé de todo Brasil espera que o posicionamento dos órgãos públicos, motivados pela pressão gerada nas redes sociais, tenha real efetividade, com a devida proteção do patrimônio histórico e cultural dos brasileiros.