História no Brasil se escreve no plural, com raça, gênero e território
Importantes mudanças na produção intelectual e no debate público sobre a história estão acontecendo no Brasil. Parte relevante dessa renovação se explica pela atuação da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros, que, aliás, responde por esta coluna, exatamente em decorrência disso. Esse é um caso interessante não só para acompanhar, mas também para entender o que se chama de agência histórica.
A partir de um gesto inaugural, que remonta a uma fotografia mobilizada em 29 de julho de 2015, na cidade de Florianópolis (SC), a RHN, HN ou apenas Rede tem ao longo dos últimos oito anos protagonizado a ampliação do repertório de referências legitimadas a se posicionar em debates contemporâneos que remetem ao passado. São vozes de pessoas com pertencimento racial, de gênero e território. São sujeitos que têm viabilizado suas existências por meio de uma articulação coletiva inédita seja na academia, seja no ativismo.
História sem historiadoras/es?
Há vinte anos, era inegavelmente tímida a presença de historiadoras/es negras/os entre quem liderava até mesmo as análises sobre os desafios para a implementação da Lei n. 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas.
Tratava-se de uma agenda política dirigida diretamente à história pesquisada e ensinada, que buscava afetar os currículos e materiais didáticos da disciplina, a formação inicial e continuada de professoras/es Brasil adentro, e a maneira como a sociedade se percebia. Mesmo assim, nem mesmo historiadores/as brancos/as consolidados eram quem dava o tom da conversa.
Coube a pesquisadoras/es proeminentes nos campos da educação e das ciências sociais, como a professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, desde a Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), falar sistematicamente sobre a incorporação da renovação historiográfica com compromisso antirracista. Isso fica evidente nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, de 2004, de que ela foi relatora.
Ocorre que a tarefa era, de fato, monumental e ia além dos limites humanos dos poucos historiadores presentes em comissões do Ministério da Educação com essa finalidade, a exemplo de Antonio Liberac, um recém-doutor negro, à época, atuante na Universidade Federal do Tocantins (UFT).
É importante lembrar que o percurso da Lei n. 10.639 acompanhou o da mobilização pelas cotas para estudantes e trabalhadores/as negros/as no ensino superior e nos concursos públicos, que culminou na promulgação das Leis n. 12.711/2012 e n. 12.990/2014. Essa movimentação, por certo, extrapolou os limites das leis, em si, e foi importante para que essa onda de questionamentos também alcançasse o mercado editorial e a produção de conteúdos de comunicação. Produção esta que tem sido reposicionada nos termos da história pública e outras possibilidades de popularização do conhecimento histórico crítico.
Nesse processo, a máxima do "nada sobre nós sem nós" também se fortaleceu entre historiadoras/es negras/os. Embora os tensionamentos, inovações e acordos necessários à construção de um novo cenário não sejam lineares ou unidirecionais, há esforços conscientes para que eles sejam postos a favorecer uma democratização mais profunda das instituições e práticas de sociabilidade em ambientes profissionais e políticos.
Nesse panorama, o Grupo de Trabalho Emancipações e Pós-Abolição - Gtep, vinculado à Associação Nacional de História - Anpuh e que completa dez anos de existência também em 2023, constituiu-se como um ambiente propício ao próprio reconhecimento da ampliação e da presença qualificadora de historiadoras/es negras/os em eventos de legitimação historiográfica.
A coexistência entre o Gtep e a RHN chega a gerar episódios divertidos, motivados por uma certa dificuldade de compreensão do que fazemos e da maneira vibrante como historiadoras/es antirracistas negras/os e brancas/os têm posto à prova a estabilidade de determinados cânones. Ironias à parte, importa registrar um pouco do que integrantes da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros têm conseguido fazer em prol da (re)elaboração da historiografia nacional.
Estamos chegando, ou melhor, chegamos!
Ao longo destes últimos oito anos, a RHN se expandiu, conquistando e colorindo novo espaços, prezando por uma convivência sem a reprodução de hierarquias acadêmicas, visando à solidariedade como estratégia de qualificar e proteger a experiência individual na graduação e na pós-graduação no Brasil e no exterior. A RHN tem existido como fonte de encorajamento e suporte a candidaturas negras para vagas na docência em instituições públicas de nível superior. O fortalecimento da atuação na educação básica e no ativismo também é uma prioridade.
Além disso, a produção coletiva de pesquisas e outras elaborações acadêmicas e não acadêmicas é prática recorrente entre integrantes da RHN. Como aconselha um velho ditado africano, "se quer ir rápido, vá sozinho. Se quer ir longe, vá em grupo". Indo em grupo, conquistamos lugares importantes na construção e divulgação das trajetórias e contribuições de pessoas negras para o país.
Isso, certamente, tem viabilizado a nossa presença em espaços estranhos a nós ou acostumados à nossa subrepresentação. Neste momento de celebração, temos orgulho de registrar que estamos chegando.
Desde março, a historiadora Patrícia Alves-Melo, da Ufam, tornou-se a representante titular da área de Ciências Humanas no Colégio de Humanidades do Conselho Técnico-Científico da Educação Superior (CTC-ES) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Ela, como coordenadora, e o historiador Álvaro Pereira do Nascimento, da UFRRJ, como coordenador adjunto de Programas Profissionais, ocupam duas das três cadeiras da Coordenação da Área de História, sendo responsáveis pela condução da avaliação dos Programas de Pós-Graduação de todo o país. Recentemente, Patrícia teve papel decisivo na aprovação do Doutorado do ProfHistória, o primeiro do Brasil.
Integrantes da RHN também ocupam, desde março, espaços de destaque na nova direção do Arquivo Nacional. Ana Flávia Magalhães Pinto, da UnB, como diretora-geral; Monica Lima e Souza, da UFRJ, como coordenadora-geral de Articulação de Projetos e Internacionalização; e Diana Souza, mestra pela UFBA, como diretora de Processamento Técnico, Preservação e Acesso ao Acervo.
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Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.
Quero receberEm julho, Mariléa de Almeida, da UnB, e Leonardo Ângelo da Silva, doutor pela UFRRJ, assumiram o assento da RHN na Comissão Técnica Nacional de Diversidade para Assuntos Relacionados à Educação dos Afro-brasileiros (Cadara), da Secadi/MEC. Também nos fazemos representar na Comissão Científica do Comitê do Cais do Valongo, na pessoa de Francisco Phelipe Cunha Paz, doutorando pela Unicamp; e na Diretoria das Relações Étnico-Raciais e Práticas Antirracistas da nova Direção da Anpuh, por meio de Fernanda Oliveira da Silva, da UFRGS.
Por último, mas não menos importante, a Rede também se sente representada na pessoa de Iraneide Soares, da UEPI, atual presidenta da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as - ABPN.
O caminho é longo, as lutas não são poucas, mas como já dizia a historiadora Beatriz do Nascimento, "não temos tempo para lamúrias"!
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