Raul Juste Lores

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Opinião

Maiores derrotados por Trump são os justiceiros sociais e a censura do bem

Não é a melhor hora para ser "situação" em qualquer governo do mundo. As massas querem mudança, a que tiver na mesa. As massas têm pressa e não têm paciência para nuances ou debates complexos.

Até o popularíssimo Modi, na Índia, apanhou nas últimas eleições. Da culta França ao autossabotado Reino Unido, governos incumbentes não param de pé. Só China e Rússia não sabem o que é ter oposição. Ou Irã e Venezuela, que prendem ou matam quem se opor.

A inflação arrefeceu nos EUA, mas os preços continuam altos. A imigração é enorme: 14,3% da população americana é estrangeira (era apenas 4% em 1970). Os 12 milhões de imigrantes ilegais contribuem para a competitividade americana (mas puxam para baixo os salários de profissões menos qualificadas, o que afeta mais os brancos e negros sem diploma). Imagina 30 milhões de imigrantes no Brasil? Não dá para imaginar (não temos nem 2 milhões). Não só os nativistas estão preocupados.

E morar em qualquer cidade boa americana nunca foi tão caro. Especialmente em cidades "progressistas" como Seatlle, Portland, Chicago ou Nova York.

A elite democrata odeia prédio e mais construção, quer distância de mistura social e barulho e adora fazer zoneamentos que proíbem até prediozinhos de três andares em vastos subúrbios de uma única casa unifamiliar por lote.

O maior exemplo da hipocrisia democrata é o Vale do Silício, na "esquerdista" Califórnia, onde só o muito rico consegue morar bem em Cupertino, Palo Alto ou San Francisco.

Sobra a opção de construir barato —e de qualquer jeito— nos mais acessíveis e conservadores Texas, Flórida e Arizona. Houston já é a quarta cidade mais populosa do país, Phoenix é a que mais cresce, e cidades ambientalmente desastrosas como Orlando se multiplicam.

Justiceiros das minicausas

Mas quem acessa as redes sociais ou passa mais de uma hora por dia lendo postagens no celular (ou seja, 99% dos americanos) vê batalhas campais que dizem pouco ou nada à maioria dos americanos.

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Devemos arrancar todas as estátuas de Cristóvão Colombo, Winston Churchill e até Abraham Lincoln de toda e qualquer praça porque eles eram parecidos à maioria de seus contemporâneos? Provavelmente os justiceiros sociais de hoje seriam piores pessoas se tivessem vivido nos séculos 15, 19 e 20 do que as personalidades acima, mas o que importa é acordar de manhã e escolher o próximo racista, homofóbico e patriarca para esculachar.

No ambiente de trabalho, na faculdade ou nas redes sociais, gente moderada, legal, que come com talheres e lava as mãos ao sair do banheiro, fica se policiando sobre o que pode dizer ou pensar, com medo de ser censurado, cancelado ou linchado por suposta gente do bem que diariamente acha uma nova vítima para enxovalhar.

Se você é um operário de uma pequena fábrica em Ohio, com colegas haitianos na mesma linha de montagem, mas é chamado de fascista, transfóbico ou estuprador potencial diariamente por artistas em Nova York, deve estar com o saco cheíssimo.

Os transgêneros são 0,3% da população americana. Mas políticos, acadêmicos e jornalistas democratas gastaram mais tempo nos últimos dez anos falando de banheiros unissex e debatendo os pronomes corretos do que falando de moradia ou segurança.

A esquerda abandonou a retórica de ascensão coletiva e abraçou a defesa exclusiva de pequenos grupos. Muita gente se sente de fora. Para muito americano pobre, líder democrata virou sinônimo de rico alienado. Assim como para muito brasileiro, nossa esquerda é grã-fina do Leblon ou da Vila Madalena (e não estão totalmente errados).

A insegurança voltou a crescer em várias cidades americanas a partir da pandemia. Mas boa parte dos progressistas de lá respondeu com propostas tão pé no chão quanto reduzir o orçamento da polícia ou não considerar crime furtos de até mil dólares em supermercados e lojas.

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Cada americano que entra em uma farmácia e vê que a seção de xampus e condicionadores se encontra gradeada e você precisa pedir para um funcionário abrir deve colocar na conta da esquerda essa insanidade pró-ladrão.

Nixon foi pré-Trump

Como parte da nossa intelectualidade de esquerda lê pouco, especialmente história (não ficção), não deve saber o que os loucos anos 60 provocaram na política.

Woodstock, hippies, passeatas contra a guerra, pancadarias em Washington e Chicago, e elegeram o paranoico republicano Richard Nixon (mas que, comparado a Trump, seria um moderado).

O revolucionário maio de 1968 em Paris elegeu mais de dez anos de governos conservadores na França —George Pompidou e Giscard d'Estaing. Ao menor sinal de bagunça, o eleitorado nos dois lados do Atlântico corre atrás da promessa de estabilidade.

Como a falta de leitura não é exclusiva da esquerda, mas, sim, especialmente violenta na direita, os conservadores e centristas não poderiam ter escolhido alguém pior para dar um basta "em tudo que está aí".

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Eleger Trump é o remédio errado para a doença. Radicalismo não se combate com radicalismo. Cancelamento não se combate com quem vive prometendo caça às bruxas.

Eleger um misógino racista que é famoso por fraudes contábeis, negócios de fachada ("Trump University"), abusos sexuais e incitação a um golpe de Estado só vai fazer os justiceiros sociais se inflamarem mais. Ou dizerem que "não é hora de ir para o centro".

Retirar direitos de mulheres ou gays, que demoraram séculos para ser concedidos, não vai sossegar nenhum grupo minorizado.

E por que um colunista dedicado a falar de São Paulo está dando pitaco no que acontece nos EUA? Ou América, como os americanos se chamam, e eu acredito no direito da autodenominação dos povos e das pessoas. Por que essa ressaca vai chegar aqui, sempre atrasada, e estamos muito despreparados para lidar com ela (vide a febre Pablo Marçal).

Muitos dos nossos linchadores diários são premiados com convites a palestras, propagandas e até campanhas para carro (falar de ESG pela manhã, ajudar a emitir CO2 à tarde).

Alguns de nossos artistas mais antineoliberais amam dinheiro. E os departamentos de marketing dos bancos amam premiar quem mais atrasa qualquer debate econômico no país. A direita conservadora também cancela e lincha, mas não passa o dia dizendo como é boazinha e pró-diversidade.

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Muitos de nossos urbanistas pró-bike, pró-adensamento, pró-mistura de classes e antigentrificação moram, sempre moraram ou escolhem morar quando ganham um dinheirinho nos lugares mais segregados da Pauliceia. Mas passam o dia sendo premiados por sua hipocrisia.

Eu mesmo, escrevendo sobre o pouquíssimo relevante e pop —no contexto nacional— urbanismo (e arquitetura e cidades), já fui chamado de neoliberal e vendido por alguns arquitetos que passam a vida projetando mansões em condomínios fechados, vivendo de mesada dos pais, ou em sinecuras com dinheiro público que demandam pouco esforço. Isso jamais vai me fazer simpatizar com Trump, claro, mas consigo entender o bode que muita gente sente dos hipócritas-palestrinhas financiados pelo grande capital.

Nem Trump lá, nem Bolsonaro aqui, entregaram milagres econômicos para as massas. Nem desburocratizaram os Estados que não entregam o que tanto prometem, apesar de tanto imposto.

No Brasil onde a esquerda no poder pode demorar três anos para permitir a mudança de uma árvore de local (legalmente, enquanto o desmatamento ilegal corre livre), a resposta bolsonarista foi deixar a boiada passar. Não foi racionalizar.

A esquerda preservacionista que pode demorar três anos para deliberar onde entra uma escada de incêndio em um prédio tombado não é pior que os bolsonaristas que queriam acabar com o Iphan.

Muitas vezes o "acabar com tudo que está aí", seja em Washington, Brasília ou São Paulo, é o que permite que tudo continue sem mudar nada.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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